Título: UM VOTO PRAGMÁTICO
Autor: Cesar Zucco Jr.
Fonte: O Globo, 07/11/2006, Opinião, p. 7

Oprimeiro turno das eleições deste ano criou um mapa eleitoral que reproduz quase perfeitamente o mapa de desenvolvimento socioeconômico nacional, dividindo o país em duas grandes áreas. Olhando um mapa como este, é tentador afirmar que o país está dividido. No entanto, os dados revelam uma realidade mais sutil e matizada.

Lula não repetiu simplesmente a votação obtida em eleições anteriores. Houve uma mudança na base eleitoral do presidente reeleito em direção às regiões de menor desenvolvimento socioeconômico. Pela primeira vez, o desempenho de Lula foi melhor em regiões de menor índice de desenvolvimento humano, mas isso não quer dizer que houve simplesmente um fortalecimento de Lula na região Nordeste. Este processo ocorreu tanto entre estados quanto dentro dos estados.

Em cada estado individualmente considerado, sem exceções, o voto de Lula migrou para regiões menos desenvolvidas. Ou seja, onde Lula perdeu participação eleitoral, a perda foi mais forte nas capitais, e onde ganhou participação, o ganho foi mais forte no interior.

No entanto, este processo não implica dizer que os ¿grotões¿ tenham se tornado de esquerda. Não há uma polarização ideológica, como ocorre, por exemplo, na Venezuela ou na Bolívia. O que há é um voto pragmático.

A chave da questão é o Bolsa Família, cujos dados de outubro indicam uma cobertura de quase 11 milhões de famílias, equivalente a cerca de 20% do total nacional. Mais importante do que a simples escala do programa é o fato de que associação entre o desempenho eleitoral de Lula e o alcance do Bolsa Família é fortíssima. Enquanto o voto em Lula em 2002 explica muito pouco do voto em Lula em 2006, cada ponto percentual a mais de cobertura do programa em nível municipal pode ter rendido até 0,8% a mais de votos para Lula, dependendo de como a relação é calculada. Isso não implica afirmar que todas as pessoas que receberam dinheiro do Bolsa Família votaram em Lula, mas não há dúvida de que o programa teve papel fundamental na reeleição do presidente.

Os dados também sugerem que, se, até hoje, o PT não havia chegado aos grotões, não foi por ser ¿de esquerda¿, mas, sim, porque era oposição e não tinha os recursos para fazê-lo. Reforçando esta tese, o mesmo padrão de interiorização do voto pode ser observado em relação ao PSDB: quando foi governo (1994, 1998 e 2002), a votação de seus candidatos a presidente esteve negativamente associada nos níveis de desenvolvimento econômico e, quando foi oposição, (1989 e 2006) esta relação foi positiva. Juntas, a história do PT e do PSDB são evidência de que o governo (quase) sempre ganha no interior do país.

A principal implicação destes resultados não é de que o país esteja perigosamente dividido, mas, sim,de que a interpretação de que os ¿grotões¿ votariam sempre nas ¿oligarquias de direita¿ estava equivocada. Os grotões votam como se imagina que votam todos os eleitores: com o bolso. Como a única política que parece alcançar as regiões mais pobres do país é a distribuição direta de recursos, e somente o governo tem a infra-estrutura necessária para fazê-lo, a conclusão é de que os grotões não são nem de esquerda, nem de direita, são governistas.

O assistencialismo talvez não seja o único caminho, mas todos os incentivos políticos tornam programas como o Bolsa Família extremamente atraentes para qualquer governo. Por um lado, fatores como crescimento econômico, aumento de renda dos trabalhadores e aumento do crédito, comumente tratados como potenciais motivadores do voto econômico, têm um alcance muito limitado nos ¿grotões¿ do país. Por outro lado, desde o ponto de vista do governante, o retorno eleitoral de um real transferido diretamente para a população é muito maior quanto mais pobre for o público alvo, pela simples razão de que este real fará mais diferença quanto menor for o orçamento de quem recebe.

O sucesso de Lula vem tão-somente o de estabelecer que o assistencialismo em grande escala chegou para ficar. Atraente desde o ponto de vista estratégico da política, e essencial desde a perspectiva de quem recebe, é ¿ e continuará sendo ¿ peça chave em qualquer governo democrático num país tão desigual quanto o Brasil. Resta-nos esperar que os programas sejam desenhados de forma a não transformar assistidos em clientes, ou seja, que sejam desenhados para amenizar e não para manter a pobreza.

CESAR ZUCCO JR. é cientista político. E-mail: czucco@ucla.edu.