Título: Fantasia hollywoodiana
Autor: OTÁVIO BEZERRA NEVES e PAULO MURILLO CALAZANS
Fonte: O Globo, 11/11/2006, Opinião, p. 7

A discussão travada hoje nas cortes brasileiras sobre a sucessão trabalhista no caso Varig revela verdadeiro conflito entre a força da Constituição e o "acaso poderoso", como dizia o jurista alemão Konrad Hesse.

Em artigo neste jornal (4/11), sob o curioso título "Exterminador do Futuro", defendeu-se uma leitura da Lei de Recuperação de Empresas no sentido de afastar qualquer obrigação trabalhista passada para o adquirente da Varig no leilão, sob pena de "extermínio" do empreendimento, invocando-se, para isso, o parágrafo único de seu artigo 60, como se ele estabelecesse não haver sucessão trabalhista na alienação de "filial ou unidade produtiva isolada do devedor".

Em primeiro lugar, no referido leilão, foram alienados "todos os ativos operacionais" da empresa. E, obviamente, não é possível imaginar uma companhia aérea sem tripulantes e aeroviários. Tanto assim que, desde o leilão, o capital humano adquirido continua produzindo, sem qualquer interrupção, o que caracteriza a sucessão.

Em seguida, é importante identificar a vontade do legislador a respeito deste ponto. Ao investigar dedicadamente o caso, o Ministério Público do Trabalho descobriu que, ao votar aquele artigo, o Congresso expressamente assegurou a sucessão das obrigações trabalhistas, porque, do contrário, dar-se-ia "margem a fraudes aos direitos dos trabalhadores e a comportamentos oportunistas por parte dos empresários" (parecer do senador Fernando Bezerra que prevaleceu sobre a proposta de emenda no 12 do plenário do Senado). Claro, pudesse isso ocorrer, a pulverização de empresas seria mais um antro fértil no país do jeitinho.

Todavia, o mais importante é perceber o enorme equívoco desta discussão quanto ao seu plano hierárquico. A grande lição oferecida pelo esforço de nossos mais ilustres juristas após 1988 foi a da supremacia da Constituição em face de outras normas. Princípios e direitos nela contidos espelham os valores mais caros para a sociedade, assim como conformam as nossas relações humanas. Daí, sua altivez normativa e sua autoridade política. Diante das possíveis interpretações da lei, portanto, deve prevalecer aquela conforme a Constituição, como nos ensina Luis R. Barroso. A proteção ao emprego, aos salários e a continuidade da relação de trabalho são princípios nela presentes e por ela protegidos. Daniel Sarmento já observou que princípios constitucionais são ponderáveis entre si, mas as leis não os desafiam, pois se subordinam hierárquica e valorativamente. Assim, a sucessão trabalhista, como forma de proteção ao emprego e aos créditos dos trabalhadores, não pode ser afastada no caso. Tampouco, a competência constitucional da Justiça do Trabalho. Seja por mera lei ordinária, ou, pior, por uma interpretação irrazoável dela.

Nesse cenário, ainda que o Juízo Cível da Recuperação da Varig tenha homologado qualquer plano de recuperação judicial, caberá à jurisdição trabalhista e, possivelmente, à constitucional restabelecer os alicerces democráticos de nosso Estado de direito, evitando que a vontade de não honrar obrigações trabalhistas possa se sobrepor às garantias constitucionais da justiça social e da dignidade humana. O que só poderia ocorrer em uma fantasia hollywoodiana, verdadeira "missão impossível"...

OTÁVIO BEZERRA NEVES e PAULO MURILLO CALAZANS são advogados e representam os funcionários do grupo Varig em ações judiciais.