Título: Verdade incompleta
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 11/11/2006, Opinião, p. 7

Logo no início do filme "Uma verdade inconveniente", Al Gore diz que não conseguiu sensibilizar, na eleição de 2000, o eleitorado americano para a mensagem que está tentando passar na tela. Agora, com seu filme, podemos dizer que ele conseguiu.

De maneira emocionante, passa ao público a sensação do risco que a humanidade corre por causa do aquecimento global do Planeta. Com uma exposição brilhante e um show de multimídia, Al Gore mostra a realidade da crise ecológica como nenhum livro conseguiu até hoje.

Mas, apresenta apenas uma das verdades inconvenientes. Há outras três, vinculadas ao modelo civilizatório que, além do aquecimento do Planeta, divide a humanidade, imobiliza o eleitorado e obscurece a consciência. Além da ecologia, há uma verdade social, outra política e outra cultural, também inconvenientes.

Além da inconveniente verdade do desequilíbrio ecológico, ao esquentar a Terra, o modelo civilizatório está dividindo a humanidade em duas partes distintas, dessemelhantes entre elas. Está em marcha uma ruptura da espécie humana. Ao mesmo tempo em que aumenta a temperatura do Planeta, ao ponto de inviabilizar o futuro da humanidade, a exclusão social divide esta mesma humanidade em dois grupos distintos, por causa de um tipo de mutação induzida pela ciência e pela tecnologia, que beneficia apenas a parcela rica, capaz de pagar pelos avançados serviços da biotecnologia e da medicina.

No final do filme, Al Gore mostra uma lista de ações que poderão interromper o avanço do aquecimento global. Mas não menciona que o Planeta salvo será propriedade apenas da parte evolucionada da espécie humana. Esta também é uma verdade inconveniente.

A terceira verdade inconveniente é a dificuldade em mudar o rumo da humanidade, por meio de eleições nacionais. O aquecimento é um fenômeno global, planetário, de médio e longo prazos, mas o eleitor elege um presidente nacional, e para o curto prazo de quatro anos. Dificilmente vamos ter presidentes, especialmente nos EUA, eleitos com propostas que sacrifiquem o consumo no presente para salvar o Planeta daqui 30 ou 50 anos.

A democracia foi inventada no tempo em que as técnicas e seus equipamentos não ameaçavam o Planeta inteiro, nem seus efeitos eram de longo prazo. Nem o eleitor, nem o político querem considerar a Terra como um condomínio onde seu país não passa de uma pequena parte obrigada a se sacrificar pelo bem comum de toda a humanidade. Os países ricos, principais responsáveis pelo desastre, não querem abrir mão dos vícios do consumo; os países pobres querem participar do banquete, mesmo que o fogão contamine o equilíbrio ecológico.

A quarta verdade inconveniente é a percepção de que a solução está na educação de toda a população do mundo. Uma educação que seja instrumento para superar a pobreza e para mudar a mentalidade. Educar a parte do mundo que não vai à escola e não aprende o necessário para sair da pobreza; e educar a outra parte que vai à escola e nela adquire a voracidade de consumir mais e mais produtos industrializados, além do conhecimento técnico que produz sem respeito à natureza.

A verdade é inconveniente e incompleta. Ninguém melhor do que o próprio Al Gore, com seu carisma profético e seu brilhantismo didático, para fazer outro filme sobre as quatro verdades inconvenientes. A primeira parte está pronta: brilhante e emocional.

Enquanto ele não completa, sugiro que você não perca o filme. Depois converse com seus amigos sobre o filme e todas as verdades inconvenientes, inclusive as três que ficaram faltando.