Título: Reforma agrária à força
Autor:
Fonte: O Globo, 17/11/2006, O Mundo, p. 31

Evo Morales ameaça senadores com protestos populares para impor projeto, caso seja reprovado

LA PAZ

Num aumento das tensões entre governo e oposição, o presidente da Bolívia, Evo Morales, ameaçou ontem mobilizar a população para a realização de protestos semelhantes aos que derrubaram dois governos entre 2003 e 2005, e impor "à força" uma nova Reforma agrária no país, caso o Senado, controlado por opositores, rejeite o projeto. Morales, que disse não acreditar mais em consenso sobre a questão, fez o alerta um dia depois de a Câmara dos Deputados, dominada pelos governistas do Movimento ao Socialismo (MAS), aprovar a Reforma do regime de terras, exigida por povos indígenas e sindicatos camponeses e chamada pelo governo de revolução agrária, mas duramente criticada por setores empresariais, principalmente da região de Santa Cruz de La Sierra.

- Em 2003, alguns parlamentares não queriam modificar a lei de hidrocarbonetos e vimos o que aconteceu. Agora, não querem modificar a lei agrária. Depois de seis meses de negociação, não acredito que vamos conseguir um acordo. O povo se levantará para fazer a mudança à força e impor a vontade da maioria - disse o presidente, já contando com uma derrota no Senado, considerada certa por analistas políticos.

O projeto do governo propõe a mudança da lei agrária vigente no país desde 1996 e determina uma ampla estatização de terras improdutivas de latifúndios, que seriam repassadas para as comunidades indígenas e camponeses pobres. Mas as regiões mais ricas do país, ligadas à oposição - formada pelo Poder Democrático e Social (Podemos) e pela Unidade Nacional (UN) e que tem maioria no Senado - se opõem radicalmente à medida. A oposição queria que somente três povos indígenas em Santa Cruz tivessem direito às terras expropriadas. Para tomar uma propriedade, pelo projeto oposicionista, as terras deveriam estar improdutivas ou com atraso de impostos por cinco anos. O projeto do governo prevê que todas as comunidades indígenas serão beneficiadas pela distribuição de terras e que serão expropriadas propriedades que estejam improdutivas ou com impostos atrasados por dois anos ou mais. A divergência fez Morales romper relações com organizações ligadas a grandes produtores agropecuários bolivianos.

- Não há mais chance de consenso. Nunca houve consenso. O povo votou pela mudança e a mudança é acabar com o latifúndio. Não negociaremos com Podemos (coligação de oposição) qualquer mudança na Reforma. Espero que os opositores se lembrem dos bloqueios das estradas e de outros fatos que ocorreram - disse o presidente, lembrando os protestos de 2005, que isolaram a região de Santa Cruz, assim como a capital La Paz.

Analistas temem confrontos no campo

Analistas e a imprensa boliviana temem que o impasse com o Senado resulte em medidas mais duras e inconstitucionais como a tentativa de se dissolver a casa. Há também o medo de um aumento significativo da violência no campo e de que os opositores de Santa Cruz partam para o confronto e até mesmo para uma tentativa separatista, mergulhando o país em uma guerra civil. Grupos indígenas iniciaram na segunda-feira uma marcha, partindo de várias regiões do país, com destino a La Paz para pressionar os legisladores pela aprovação da medida. O objetivo é estar na porta do Senado durante a votação, prevista para acontecer entre terça e quarta-feira. Os produtores de Santa Cruz também convocaram a população para uma marcha e ameaçam invadir propriedades do governo, inclusive instalações de produção de gás, se o projeto for aprovado.

- Temos esperanças de que nossa força no Senado consiga impedir essa medida louca de um presidente autoritário. Não é dessa forma que vamos conseguir resolver os problemas do país. O que vamos conseguir com isso é uma guerra civil - disse Fernando Messmer, deputado do Podemos, que abandonou a Câmara dos Deputados junto com outros parlamentares durante a votação do projeto.

Além dos grandes agropecuaristas bolivianos, a Reforma agrária do governo preocupa cerca de 400 produtores de soja brasileiros, que têm vastas propriedades para cultivo no país e são responsáveis por grande parte da exportação boliviana. La Paz garante que somente terras improdutivas ou em situação ilegal serão desapropriadas. O problema, segundo os brasileiros, é que não se sabe quem estará em situação ilegal depois da mudança da legislação sobre a posse da terra.

Essa não é a primeira vez que Evo Morales convoca a população quando percebe que um projeto do governo pode ser rejeitado pelo Parlamento. Um movimento semelhante foi feito para a aprovação da lei de hidrocarbonetos, no início de seu governo, que acabou sendo aprovado pelo Senado.

A crise entre governo e oposição também aumentou ontem na Assembléia Constituinte, com o início de uma greve de fome de sete parlamentares da Unidade Nacional, que acusam Morales de tentar controlar a aprovação dos artigos da nova Constituição.

- Chegamos a essa medida extrema porque consideramos que a democracia na Bolívia está em perigo, a unidade do país está em risco e os direitos civis estão sendo violados pelo governo - disse o parlamentar Doria Medina.