Título: Analfabetismo persiste no país
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 10/12/2006, O País, p. 3

Programa federal consumiu R$700 milhões e não surtiu efeito, mostra IBGE

Analfabeta, a cozinheira Maria da Silva Lima não tem livros de receita. Aos 58 anos, é parte dos 14,9 milhões de jovens e adultos brasileiros que não sabem ler nem escrever. Maria da Silva bem que tentou: nos últimos anos, passou por dois cursos de alfabetização no núcleo rural Engenho das Lajes, na divisa do Distrito Federal com Goiás, a 50 quilômetros do Ministério da Educação (MEC). A exemplo do que ocorre em todo o país, o aprendizado nesse tipo de curso foi insuficiente, e ela continua dependendo da memória na hora de cozinhar salgados e bolos.

- Assino o nome, junto letras, mas faço confusão. Se eu soubesse ler, não estaria como estou hoje - diz ela, que vende comida e artesanato para complementar os R$350 mensais da aposentadoria do marido.

Prioridade no primeiro ano do governo Lula, o combate ao analfabetismo já consumiu mais de R$700 milhões do programa Brasil Alfabetizado, do MEC. O dinheiro é suficiente para atender 7,1 milhões de adultos, mas surtiu pouco efeito, pelo menos segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE. Em 2003, a Pnad estimou que 11,54% dos brasileiros acima de 15 anos eram analfabetos. Em 2005, eram 11,05%. Pior: em números absolutos, o universo até cresceu, acompanhando o crescimento populacional. O aumento foi de 14,7 milhões para 14,9 milhões, mais do que a soma dos habitantes do Paraguai e da Bolívia.

Maria da Silva nunca freqüentou a escola quando criança. Aos 7 anos, já ajudava a mãe na roça de milho e feijão, em Goiás. Só pisou numa sala de aula depois de completar 50 anos, num curso oferecido pelo Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural). Aprendeu o alfabeto de A a Z, mas não foi muito além disso.

Evasão de curso atinge 50%

Neste ano, a cozinheira voltou a estudar no Brasil Alfabetizado, numa turma mantida pela ONG Associação Positiva de Brasília. Abandonou o curso na metade para ser cabo eleitoral. A evasão no Brasil Alfabetizado atinge até 50% dos alunos, segundo relatório do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, órgão ligado à Presidência da República. O MEC nega. Segundo o secretário Ricardo Henriques, a evasão é em torno de 20%. Os outros 30% seriam alunos que faltam muito, prejudicando o aprendizado.

Na parede da sala de Maria da Silva, há uma placa com dizeres religiosos que ganhou do filho. Qualquer visitante fica surpreso ao ouvi-la ler o texto com desenvoltura. Se tiver que repetir, porém, ela troca palavras. Onde está escrito Deus, ela primeiro lê Senhor. Numa nova tentativa, lê Jesus. Rindo, confessa: memorizou a mensagem, assim como faz com as receitas.

O lavrador Geraldo Gonçalves do Carmo não faltou a nenhuma aula, diz a alfabetizadora Adriana Braga Pereira, contratada pela ONG Positiva para alfabetizar 50 adultos este ano, no Engenho das Lajes. Geraldo identifica as letras, mas só forma sílabas com muito esforço e auxílio da professora.

- Ficar analfabeto a vida inteira é feio demais. Você vai pegar um ônibus e não sabe, tem que pedir ajuda. Aí perguntam: "É cego?" - diz Geraldo.

A alfabetizadora Adriana concluiu o ensino médio, mas não o curso de magistério. Antes do Brasil Alfabetizado, sua experiência foi como auxiliar de biblioteca e professora assistente numa escola particular, em Brasília. Ela conta que, dos 50 alunos que deveria ter alfabetizado neste ano, cerca de 25 abandonaram o curso. Ao final, apenas cinco, segundo ela, eram capazes de ler e escrever um simples bilhete.

Aos 71 anos, a dona-de-casa Josefa Faustino dos Santos não quer morrer analfabeta. Antes, precisa curar-se do glaucoma que afeta a visão. Neste ano, seu marido e a filha Maria do Socorro, de 42 anos, começaram o curso:

- A gente não sabe nada, tem que aprender. Quero ler a Bíblia - diz Josefa.

Programa é insuficiente

Parceiros do Brasil Alfabetizado dão reforço

BRASÍLIA. O Brasil Alfabetizado é insuficiente para ensinar jovens e adultos a ler e escrever, avaliam entidades parceiras do programa do Ministério da Educação. Para melhorar a qualidade dos cursos, elas investem recursos próprios além do previsto nos convênios.

É o caso do Serviço Social da Indústria (Sesi), maior parceiro do Brasil Alfabetizado, e da Alfasol (Alfabetização Solidária), organização não-governamental criada no governo Fernando Henrique. Parceiro desde 2003, o Sesi aplicou R$76 milhões nos últimos três anos para atender cerca de 900 mil analfabetos.

A gerente de projetos de Educação de Jovens e Adultos do Sesi, Eliane Martins, diz que o objetivo foi criar uma rede de supervisão formada por professores com diploma de nível superior para orientar o trabalho dos alfabetizadores, a maior parte sem diploma. Como os recursos repassados pelo MEC cobrem apenas a formação inicial, que consiste num breve curso para o professor antes do início das aulas, o Sesi contrata supervisores, que fazem inspeções in loco.

A Alfasol investiu R$22 milhões, nos últimos três anos, para atender 499 mil alunos. A entidade mobiliza 212 instituições de ensino superior, que cedem professores para orientar a alfabetização. O deslocamento dos professores até os locais dos cursos é custeada pela Alfasol.

- Não conseguiria trabalhar com um mínimo de qualidade e em parceria com as universidades sem garantir algumas ações que o Brasil Alfabetizado não oferece - diz a superintendente-executiva da Alfasol, Regina Célia Esteves.

Apesar do esforço, 60% dos alunos da Alfasol terminam o curso sem saber escrever frases corretamente. Nas turmas do Sesi, a evasão é de cerca de 20%. Dos alunos que terminam o curso, até 25% não aprendem. Amanhã o Sesi divulga avaliação própria com seus estudantes.

A baixa freqüência às aulas é um dos problemas, além das dificuldades inerentes a quem não foi à escola na infância. Um desafio para o Brasil Alfabetizado continua sendo atrair analfabetos absolutos, que não conhecem as letras.

Falta de controle abre brechas para desvios

Programa de alfabetização do MEC não dispõe de dados sobre resultados já alcançados

BRASÍLIA. O programa Brasil Alfabetizado, do Ministério da Educação (MEC), já recebeu mais de R$700 milhões para atender 7,1 milhões de jovens e adultos, mas não sabe quantos alunos aprenderam a ler e escrever. A falta de controle dos repasses a governos estaduais, prefeituras e organizações não-governamentais (ONGs) abre brechas para desvios. Segundo o coordenador de Avaliação do Brasil Alfabetizado, João Pedro Azevedo, uma fiscalização por amostragem estimou a existência de 75 mil alunos fantasmas, o equivalente a 4% do universo de 1,9 milhão de alfabetizandos. Outro levantamento não localizou 4% das turmas, nas quais deveriam estudar cerca de 60 mil alunos.

De acordo com Azevedo, o número de alunos fantasmas e de turmas não localizadas não é suficiente para comprometer o programa. Ele diz que os resultados da primeira avaliação cognitiva, ou seja, o teste capaz de mostrar quem aprendeu a ler e escrever serão divulgados no ano que vem.

MEC admite dificuldades para conter analfabetismo

O secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Ricardo Henriques, admite que o ritmo de queda do analfabetismo no Brasil, nos últimos anos, é mais baixo do que o esperado. Entre as hipóteses levantadas por ele, está até mesmo a possibilidade de que os analfabetos que respondem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) sejam muito rigorosos no conceito de analfabetismo e que isso dê margem a aumentar o contingente.

O secretário cita estudo do Banco Mundial (Bird) que teria apontado o sistema de avaliação de Gana, na África, como o mais completo entre 28 países com programas de alfabetização de adultos. Segundo Ricardo Henriques, o sistema de Gana só produziu resultados após seis anos.

- Começamos nosso sistema em outubro de 2004. Em dois anos e meio, o Brasil vai ter isso - diz ele.

Preocupado com a persistência dos altos índices de analfabetismo, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão formado por representantes da sociedade, recomendou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que formule uma política de Estado para combater o problema. Para o CDES, o Brasil Alfabetizado tem problemas de foco e acesso.

A ex-deputada federal do PT e educadora Esther Grossi (RS) é outra crítica do programa. Segundo ela, a metodologia é inadequada e o fato de os professores serem leigos - parte deles não concluiu sequer o ensino fundamental -, acaba com qualquer chance de êxito. Esther preside o Geempa (Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação), uma ONG que acaba de firmar parceria com o MEC para treinar professores e alfabetizar jovens e adultos em três estados.

- O principal problema é de método. As características do pensamento de um adulto analfabeto não são compatíveis com métodos convencionais, como o Paulo Freire, que usam a separação da palavra em sílabas. Além disso, o programa não pode ser feito por leigos - diz ela. (Demétrio Weber)

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