Título: Chances de redenção
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 24/12/2006, O Globo, p. 2

Neste tempo natalino, mesmo os que não se guiam pela narrativa cristã são fisgados pelo espírito de confraternização, a busca da superação de nossa danação original, da qual fomos salvos pela segunda chance que Deus nos deu, ao renascer entre os homens e por eles se imolar. Todos queremos ficar um pouco melhores e mais dadivosos. Na política o ano foi de grandes pecados mas termina oferecendo alguma chance de rendenção aos políticos e governantes.

O judas deste finalzinho de ano foi o Congresso Nacional, a legislatura já amplamente apontada como a pior de todos os tempos. Talvez não. Em relação à democracia, por exemplo, já tivemos legislaturas piores, que aceitaram o fechamento do Congresso, assimilaram cassações arbitrárias, vergaram-se aos tiranos do momento. Mas isso já é passado. A legislatura foi mesmo desastrosa, minou a crença na representação popular mas já acabou. Agora vem outra, não muito renovada, e seus membros têm a obrigação de não repetir os desatinos desta que se vai.

O governo Lula foi também paradoxalmente surpreendente. Surpreendeu positivamente na economia, onde tantos esperaram que houvesse desastre, mas decepcionou na questão ética. No café da manhã que teve na sexta-feira com jornalistas, o presidente Lula falou com muita humildade de seu aprendizado, da necessidade de não repetir erros, de sua responsabilidade maior para com o povo que, em nome dos resultados econômicos e sociais, relevou erros e falhas e o reelegeu. Há razões para esperar que o governo tenha aprendido com os erros. Agora o presidente Lula está escrevendo o último capítulo de sua biografia política e o PT, pela votação que obteve, tem uma chance de se reciclar, cortando o que ainda existe de distorção nas práticas e na sua mentalidade política. Lula está determinado a levar o país ao crescimento mas já deixou para trás o surto voluntarista dos dias que se seguiram à reeleição. Voltou a beijar a cruz da austeridade fiscal e do combate à inflação e já não fala de 5% de crescimento como uma meta a ser alcançada a qualquer custo. Para ter uma governabilidade melhor, tem buscado construir uma coalizão mais orgânica, com algum fundamento programático e menor impeto pragmático, aparelhista e fisiológico. Nossos partidos são o que são, sobram-lhes defeitos, faltam-lhes algumas virtudes, mas é com eles que haveremos de chegar a um melhor funcionamento da democracia. Eles devem ter aprendido alguma coisa.

Inclusive os da oposição, que também têm defeitos e virtudes, assim como a legítima aspiração à alternância no poder. Devem eles também reavaliar posturas e equívocos, sem abdicar da obrigação de, no próximo período, combater e fiscalizar o governo.

Enfim, tivemos um ano de muitos pecados na política nacional, e foram tão grandes que nos obrigam, neste rito de passagem para outra etapa, a pôr o ceticismo de lado e apostar na dádiva da redenção.