Título: Punir é democrático
Autor: Torres, Demóstenes
Fonte: O Globo, 07/01/2007, Opinião, p. 7

Com muita bondade processual, daqui a dois anos os autores do bárbaro crime de Bragança Paulista serão julgados, fora naturalmente as possibilidades recursais. Pelas circunstâncias do crime devem ser condenados a aproximadamente 90 anos de prisão cada um. A pena trará a sensação de que se fez justiça, mas depois virá a decepção. Por conta das facilidades do sistema penal brasileiro, dificilmente os assassinos vão ficar encarcerados por mais de três anos e meio, caracterizando-se uma espécie de semipunição. O Estado perdeu a capacidade de reprimir. E o pior: porção majoritária dos doutrinadores e dos operadores do direito acredita que é necessário tornar as leis ainda mais lenientes com o crime (claro, há outra corrente minoritária).

A pena de prisão começou a ser desmontada no Brasil no estertor do governo militar. O propósito era eliminar o conceito da segurança do Estado contra a sociedade que predominava no regime de exceção, mas levaram a segurança pública de embrulho. Por conta dos abusos das prisões políticas criou-se um dogma jurídico de que a pena de prisão é por natureza arbitrária e ao Estado é ilegítimo reprimir o delito. O resultado foi desastroso já na década de 1990, quando a criminalidade explodiu no Brasil e cuja escalada permanece incontida justamente porque os doutrinadores e operadores penais insistem em atribuir prerrogativas falaciosas ao direito à liberdade.

A superlotação dos presídios causa a sensação falsa de que a lei penal é rigorosa, quando, na verdade, o sistema penitenciário é que está à bancarrota. No Ministério da Justiça e na cabeça da maioria dos promotores de justiça, juízes e delegados cristalizou-se uma obsessão de recuperar e "ressocializar" o preso, pois a cadeia trama contra a civilização. Ora, a finalidade primeira da pena deve ser a de manter segregado quem perturba o ambiente social ao praticar uma conduta repulsiva. É assim no sistema inglês, de Cingapura ou americano, onde o conceito de segurança máxima é regra. O criminoso, nos crimes de alto potencial ofensivo, tem de ser tratado com dignidade, mas encarcerado, até porque a experiência internacional mostra que, mesmo em situação satisfatória de cumprimento da pena, o índice de recuperação nos chamados crimes violentos é desprezível.

Os baixos investimentos da União explicam em parte a crise da segurança pública. Na verdade o sistema faliu porque se inverteu o sentido da pena. Em vez de a lei sustentar o dever estatal de punir, patrocina os interesses da advocacia criminal. O Brasil adora se rotular de nação pacífica, como se a natureza cordata fosse um atributo da tropicalidade. Povo pacífico com um indicador de homicídios superior ao do Iraque e um número de 2.500 ocorrências diárias de crime violento contra o patrimônio? Somos, sim, brutais, e infelizmente a tendência é de recrudescimento do crime, a se considerar a incapacidade estatal de reprimir, apurar, processar e executar a condenação.

No Brasil não há política pública sem alguma deficiência de fundo, mas o país evoluiu nas últimas décadas em infra-estrutura, no combate ao analfabetismo, na redução da mortalidade infantil, no aprimoramento das relações de consumo etc. A democracia, no entanto, faltou com o dever de cuidar da segurança pública. Vivemos um estado geral de delinqüência porque a certeza da impunidade vale tanto para o parlamentar corrupto que encontra guarida no corporativismo do Congresso Nacional quanto para o operário que decide incinerar uma família para ocultar um roubo.

Por mais hedionda e reprovável que seja a conduta criminosa, no Brasil sempre haverá um juiz, em algum grau de jurisdição, que livrará o bandido da prisão. Virou um ramerrão promotor de justiça dar entrevista como se fosse assistente social. O progresso social e o enriquecimento da nação são buscas contínuas do processo civilizatório, porém é uma inominável bobagem imaginar que o Brasil precisa acabar com as desigualdades para ter segurança pública. Pois é justamente nos países mais ricos que a violência encontra mercado. Penso o contrário: a segurança pode melhorar os indicadores de desenvolvimento humano do país. A escola em tempo integral, por exemplo, é uma medida de prevenção geral fabulosa e que deve ser implementada hoje, mas o Brasil não pode esperar por uma panacéia.

Depois do último ataque de uma organização criminosa em São Paulo, o Senado aprovou um pacote de 11 projetos de lei destinado a endurecer com o crime, especialmente no que se refere a instituir mecanismos de segurança máxima nos presídios e de dificultar o livramento dos condenados, uma pequeníssima gota dentro da oceânica necessidade de outras mudanças. Na ocasião, os adeptos do queridismo penal condenaram as medidas ao classificá-las de legislação do pânico. Eles venceram novamente. A crise passou e com ela se foi o esboço de vontade do governo federal de alterar a legislação criminal a favor da sociedade. Os projetos estão parados na Câmara dos Deputados e inertes ficarão sem o impulso do Ministério da Justiça. São providências que recuperam parcialmente a capacidade punitiva do Estado, o que me parece legítimo e razoável em um país que perdeu a ponderação.