Título: Lula foi muito infeliz
Autor: Coelho, Camilo
Fonte: O Globo, 19/02/2007, Rio, p. 8

Pais de João Hélio criticam presidente por declarações contra a redução da maioridade penal

Nove dias depois da tragédia que atingiu a família, Rosa e Hélcio Vieites, pais do menino João Hélio Fernandes, de 6 anos - que morreu ao ser arrastado pelo cinto de segurança por assaltantes - fizeram críticas às declarações do presidente Lula sobre o caso. Para eles, o presidente foi infeliz ao opinar sobre a questão da redução da maioridade penal, quando disse que o assunto não podia ser discutido num momento de comoção. "Ele colocava os infratores, em especial o menor que participou do crime, como uns coitados", reclamou Hélcio. Na opinião do pai, a frase demonstra o descaso com que os políticos ainda tratam a questão da violência no país. Mas os pais acreditam que a mobilização popular desencadeada pelo crime bárbaro possa fazer com que sejam feitas mudanças legislação penal, acabando com benefícios concedidos a condenados, como a progressão de regime depois de um sexto da pena cumprida. "O Rio de Janeiro está muito triste. O João é como se fosse o filho de cada família desprotegida. O carioca se sente desprotegido e o João é o filho de cada família", disse Rosa. Alternando momentos de desabafo, em que parecia fazer uma catarse de toda a indignação e a revolta com o assassinato do filho, com outros em que emudecia, numa profunda tristeza, Rosa contou que, no mesmo dia em que foi morto, João Hélio fez na escola um desenho de uma amarelinha com uma linha que o levava para o céu. Perguntado pela professora sobre o significado do trabalho, João explicou: "Sou eu, cheguei ao céu".

Camilo Coelho*

Vocês temem que o carnaval faça as pessoas esquecerem o que aconteceu com o João Hélio?

ROSA CRISTINA FERNANDES VIEITES: Tenho medo, sim. Gostaria até que a população do Rio de Janeiro e do Brasil inteiro colocasse nos seus carros uma fita preta amarrada em cada retrovisor e pendurasse nas janelas de casa um pano preto. O carnaval é uma festa popular e o povo costuma esquecer tudo o que está acontecendo quando vem esse momento de alegria. Mas o brasileiro tem que encarar que o crime é errado e tem que ser punido. Essas leis que reduzem para um sexto as penas, entrando no semi-aberto, depois no aberto, não podem existir. Agora, o presidente diz que não podemos fazer mudanças sob comoção nacional, então o que ele vai fazer? Nada? E se fosse o filho dele, o que ele faria, qual seria a solução? Deveria ter um investimento pesado na área de segurança, com construção de presídios de segurança máxima para colocar todos esses criminosos na cadeia, em regime fechado. Está tudo a favor da "bandidagem", parece até que eles não estão governando para o cidadão. Estão governando para os marginais. Parece até que é um país sem lei.

HÉLCIO LOPES VIEITES:: Agimos muito na emoção, pelo crime brutal que fizeram com o nosso filho. Existe uma proposta de decreto da novelista Glória Perez, de quando ela conseguiu a lei dos crimes hediondos, mas há cerca de um ano eles conseguiram que ficasse mais fácil obter uma progressão de regime. Nesse ato de 1990, eles deixavam de ter acesso à liberdade condicional e cumpriam a pena em regime fechado. Mas há um ano retroagiu. Tinha que ser alterado para voltar ao que era antes. Queria que a sociedade olhasse a gente, os pais do Joãozinho, e visse se isso é justo, retroagir benefícios quando você não pode retroagir uma lei.

A tragédia com o João Hélio tomou uma grande proporção. Como vocês estão vendo isso tudo?

ROSA: A gente vê que algumas autoridades até têm intenção real de fazer algumas alterações na legislação para tornar o Código Penal mais rigoroso, mais justo, diante de tantos crimes, até por esse momento que o Rio de Janeiro está passando. O governador (Sérgio Cabral) parece ter propostas bem interessantes para uma alteração da legislação.

O que vocês acharam do comentário do presidente, dizendo que a gente não pode agir no calor da emoção?

HÉLCIO: Eu fiquei muito triste de ler uma reportagem sobre o presidente Lula, onde ele falava que não deveríamos agir nesse momento de comoção. Ele colocava os infratores, em especial o menor que participou do crime, como uns coitados. Ele acha que não é justo reduzir a maioridade em cima dele, quando na verdade não se trabalhou o menino na infância. Mas como uma pessoa de 16 anos é capaz de eleger um político, um presidente, e não é capaz de assumir juridicamente pelos seus atos, seu comportamento? A frase do Lula é uma amostra do descaso que os políticos têm com a sociedade, ele foi muito infeliz. Queria saber se o povo também acha isso. foi um absurdo o que ele falou.

ROSA: Se eu tiver que falar na cara do Lula que ele foi muito infeliz com essa declaração, eu falo. Se tiver que falar na cara dele que é um absurdo, eu falo. Queria fazer a seguinte pergunta: e se fosse o neto dele, o filho dele? O que ele faria, que punição passaria pela cabeça dele?

Você acha que a morte do João pode ser responsável por uma mudança no país?

HÉLCIO: Era esse símbolo que a gente queria, porque eu acho que está mais do que no momento de mudar. As poucas vezes que a gente se locomoveu depois do que aconteceu, viu que nada mudou. Não vemos um carro de polícia, continua tudo a mesma coisa na rua. A gente continua abandonado, a sociedade continua abandonada, principalmente a Zona Norte da cidade. O que aconteceu com o João foi aquela última gota que transbordou, teve também a crueldade que foi usada. Não que as outras não tenham sido, a dor é igual ao se perder um filho. É como colocar um aspirador de pó no peito e arrancar tudo de dentro, deixar um buraco vazio.

ROSA: A gente gostaria que a população se unisse em manifestações para cobrar. Se nos for dada a oportunidade de fazer esses pedidos diretamente para as autoridades, a gente vai colocar os nossos desejos. Queremos fazer com que a população se una para que eles se sintam pressionados a agir. É importante agora que eles realmente sejam punidos. Não pode é cumprir um sexto da pena, depois passar para regime semi-aberto, depois para aberto. O Rio de Janeiro está muito triste. O João é como se fosse o filho de cada família desprotegida. O carioca se sente desprotegido e o João é o filho de cada família. Estamos buscando o político certo, que vai nos ajudar a partir para Brasília, ou seja lá onde for. Não queremos ninguém oportunista, que queira usar a nossa causa para aparecer ou defender interesses pessoais.

Vocês acham que o que aconteceu poderia ter sido evitado se houvesse policiamento mais eficiente?

ROSA: É difícil prever, mas acho que evitaria. Acho que o policiamento falhou.

HÉLCIO: Foram sete quilômetros que ele foi arrastado sem que uma viatura parasse o carro. Acho que essa é uma situação assustadora, que serve para provar que o carioca está totalmente desprotegido.

Qual o sentimento de vocês em relação aos bandidos?

ROSA: Eu sou um ser humano. Você acha que algum ser humano perdoaria um bandido que fez isso com o seu filho? Eu não sou máquina, eu não sou Deus, eu sou de carne e osso. Eu não perdôo os bandidos. Eles têm que apodrecer dentro da cadeia. Eu gostaria de pedir, não para eles, mas para as autoridades responsáveis, para que não dessem a eles esse benefício de semi-aberto e aberto. Que eles sejam obrigados a cumprir a pena integralmente em regime fechado.

Qual a opinião de vocês sobre a questão da maioridade penal?

ROSA: Todo mundo tem que ter responsabilidade pelos seus atos. Em outros países com legislações mais rigorosas, a criminalidade não é assim porque existe punição. Lá eles pensam uma, duas, três vezes antes de fazer alguma coisa. Aqui não, eles já sabem que tem uma lei que favorece o crime e que não são punidos, então resolvem fazer mesmo. Às vezes em casa não tem nem refeição e lá tem, a gente paga para eles comerem. Com 16 anos não se vota? Por que para cumprir pena de crimes hediondos ele não pode ser classificado como adulto? Por que ele é adulto para uma coisa, mas não pode ser para assumir o erro dele?

Os bandidos tinham ou não consciência de que o João Hélio estava pendurado pelo cinto?

HÉLCIO: Eles viram, sim. Quando aconteceu, ela (Rosa) gritou muito, pedindo para eles tirarem o João dali. Eles são frios, totalmente desprovidos de sentimento. Tudo isso que eles inventaram, esse negócio de arma de brinquedo, acredito que seja para atenuar a defesa deles.

Vocês acham que a Aline pode ficar traumatizada por não ter conseguido proteger o irmão naquele dia, no momento do assalto?

ROSA: Ela está fazendo esse tratamento psicológico, para que essa imagem não venha a ser um trauma para ela. Você coloca um monte de questões na cabeça. Poderia não ter ido, poderia não ter entrado naquela rua, poderia isso, poderia aquilo.

A gente teve conhecimento de que o último desenho que o João fez na escola seria uma referência ao que aconteceria com ele. É verdade?

ROSA:Eu já peguei esse desenho e nós ficamos sensibilizados. Eles tinham feito uma brincadeira de amarelinha e depois foram para a sala de aulas. O João desenhou a amarelinha dele, fez ele em baixo e o céu em cima. Desse céu ele puxou uma linha e se desenhou novamente lá em cima. A professora perguntou: "João, por que você puxou essa linha aí para cima?" E ele respondeu: "Sou eu, cheguei no céu". Isso foi no dia em que aconteceu, algumas horas antes. Você ouvir isso, só se não tivesse sensibilidade, a professora chorou tanto quando lembrou. Intuição existe, a gente tem intuições.

Vocês chegaram a pensar em deixar o Rio?

HÉLCIO: Nós estamos enraizados com a família aqui. Mas, mesmo assim, muitas vezes isso passa pela nossa cabeça.

O que vocês podem passar para as famílias que acompanham o sofrimento de vocês?

HÉLCIO:A gente está em pedaços. É como um copo ou um vaso quebrado em muitos pedacinhos. A gente está reaprendendo a viver. Em muitos momentos vem o desespero, você acha que ele vai passar correndo na sua frente. A gente fala de justiça e não fala de revolta, mas o principal é nossa dor, que queremos transformar em alguma coisa de concreto para que tenhamos alguma mudança boa para o país, para a sociedade.