Título: Sociedade hedionda
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 03/03/2007, Opinião, p. 7

Estudos recentes mostram que a probabilidade de que um preso brasileiro tenha vindo de uma família miserável é o dobro do que para o resto da população. Revelam também que pessoas com menos de seis anos de estudo têm duas vezes mais chances de estarem presas do que pessoas educadas. Por isso, a desigualdade social tem sido apontada como a principal causa da violência, ao lado da falta de escolaridade. Dessa forma, medidas mais duras contra o crime, inclusive a redução da maioridade penal, seriam, aparentemente, medidas contra os pobres. Até porque os ricos, com seus advogados e sua influência sobre a polícia e a justiça, terminam escapando da prisão. Mas os que defendem o maior rigor das leis insistem que suas propostas não são contra os pobres, porque eles são pacíficos.

De fato, os pobres brasileiros são pacíficos. Há séculos, no campo, pobres brasileiros sem-terra assistem, pacificamente, aos seus filhos morrerem de fome, enquanto as grandes empresas exportam comida. Nas cidades, pobres pedem esmolas com filhos esfomeados em frente a supermercados abarrotados de comida; ou com filhos doentes, em frente a farmácias repletas de remédios. Pacificamente, famílias inteiras vivem embaixo de viadutos, ao lado de luxuosos condomínios.

Os pobres brasileiros são obviamente pacíficos. Pacíficos até demais, diriam alguns. Afinal, assistir pacificamente aos filhos morrerem de fome ou doença, ao lado da comida e do remédio, é um pacifismo tão radical que chega a ser antinatural. É um admirável respeito pacífico à lei dos homens, porém, totalmente contrário às leis da natureza. A história do Brasil é um romance de pacifismo, aceitação e conformismo da multidão de pobres, ante a desigualdade e o acinte da riqueza de poucos.

Assassinar é um crime gravíssimo, não importa a idade do criminoso. Assassinar um menino arrastando-o pelas ruas do Rio de Janeiro é um crime mais que gravíssimo - horroroso. Mas também é um crime hediondo deixar milhares de meninas, a partir dos nove anos de idade, serem arrastadas vivas pelas ruas e praias do Brasil como prostitutas infantis.

Um jovem educado, com futuro assegurado, tem muito menos incentivo para cair no crime; mesmo assim, alguns terminam caindo. Um jovem sem futuro, sem educação para buscar uma alternativa na vida, assistindo à violência maior da abundância ante a miséria, tem um incentivo imediato para aderir à criminalidade; mesmo assim, nem todos caem no crime. E aqueles que tiverem caído devem ser punidos. Porque os pobres são pacíficos, mas a pobreza é violenta em si, e fabricada. Nem todos resistem às necessidades, aos desejos de consumo, ao abandono, à ostentação dos outros. E terminam contaminados pela maldade da sociedade perversa, até caírem na perversidade individual do crime.

Alguns bandidos são violentos, outros assim ficaram. E ficaram por causa de alguma falha na sua formação, no decorrer de sua infância e adolescência. Os que cometem os crimes têm de ser punidos. Principalmente os que fabricaram os criminosos que poderiam ter tido outro rumo na vida.

Têm razão os que defendem que todos os criminosos sejam punidos, independentemente da classe social, se pobres ou ricos. Até porque o perdão a criminosos é uma injustiça contra a imensa massa de pobres, que são as maiores vítimas da maldade dos bandidos. Mas também devem ser punidos aqueles que fabricam a violência, por ação ou omissão; aqueles que constroem uma sociedade perversa, hedionda, criminosa ela própria. Porque os pobres são pacíficos, mas a pobreza é uma violência. E mais, é uma fábrica de mais violência.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF). www.cristovam.com.br.