Título: Terapia comunitária contra dores da migração
Autor: Lins, Letícia e Martin, Isabela
Fonte: O Globo, 22/04/2007, O País, p. 4

Modelo, que começou há 20 anos em favela de Fortaleza, está sendo implantado em outros estados e até no exterior

Letícia Lins e Isabela Martin

RECIFE e FORTALEZA. Um movimento silencioso se espalha pelo país para combater os problemas que, anualmente, levam à internação de quase 300 mil pessoas em hospitais psiquiátricos públicos ou conveniados com o Sistema Único de Saúde (SUS). É a terapia comunitária, um modelo inicialmente implantado entre os excluídos do Ceará que já chegou a outros estados brasileiros e começa a ser exportado para França, Suíça e Itália, apesar da grande diferença entre a realidade social e sanitária daqueles países e do Brasil.

A terapia comunitária começou há quase 20 anos, na comunidade Quatro Varas, na favela de Pirambu, periferia de Fortaleza. Dos 250 mil habitantes, a maior parte é de migrantes que fugiram do sertão em tempos de seca, deixando para trás a cultura da caatinga, com seus cantadores, curandeiros, plantas medicinais e, sobretudo, os laços solidários com vizinhos, parentes, compadres e comadres.

Ao perder a identidade, mergulho na doença mental

Ao chegar à cidade, enfrentam o anonimato, a exclusão, a violência e o sonho quase impossível de uma vida melhor. Dessa situação à loucura, o passo é curto, diz o psiquiatra Adalberto Barreto, criador do método e hoje a maior autoridade em terapia comunitária no Brasil.

- Os processos migratórios desencadeiam uma série de perdas culturais, retirando do grupo elementos fundamentais para nutrir sua identidade e coesão. Com a migração, se perdem os vínculos com a terra, a comunidade, a família, os valores. E muitos terminam por perder o juízo. Ou seja, ao perderem a identidade mergulham na doença mental - diz o professor da Universidade Federal do Ceará.

Adalberto costumava receber, em seu ambulatório, moradores de Pirambu levados por seu irmão, o advogado Airton Barreto. Eles reclamavam de "encosto". A demanda cresceu tanto que o psiquiatra passou a ir à favela semanalmente, quando era abordado por moradores que lhe pediam receitas de remédios controlados, muitos dos quais prescritos por médicos que mal falavam com os pacientes.

Ao prescrever um sonífero solicitado por uma mulher, Adalberto percebeu que a paciente não tinha dinheiro sequer para comida. E entendeu que o "encosto" que os favelados relatavam era o peso da exclusão. E que, migrantes ou não, sofriam síndromes relativas ao abandono, insegurança e baixa auto-estima.

Começaram, então as sessões de terapia comunitária, um programa de atenção primária de saúde mental, que usa a competência das pessoas e promove a construção de redes sociais, com base nas tradições e culturas dos próprios pacientes. Nos encontros, os favelados contavam seus problemas, formando entre eles uma teia de solidariedade, de apoio uns aos outros.

O trabalho chamou a atenção de Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança. Ela solicitou o treinamento das agentes da Pastoral, e a prática se estendeu pelo país. No Brasil, há 25 pólos formadores e mais de 11.500 terapeutas voluntários atuando, após formação de 380 horas-aula. A iniciativa foi implantada como política pública em São Paulo, Santos, Salvador, Londrina e Brasília. Nos últimos quatro anos o modelo foi implantado na França (Grenoble e Marseille) e na Suíça (Genebra e Lausanne). Adalberto foi convidado a falar sobre o assunto na Academia Americana de Terapia Familiar, e em novembro falará em Milão e Roma.