Título: Confronto entre dois modelos
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 22/04/2007, O Mundo, p. 26

País em crise de identidade e confiança elege sucessor de Chirac.

É uma França em crise de confiança e de identidade que vai hoje às urnas escolher quem governará o país no lugar de Jacques Chirac, que ficou 12 anos no poder. No cardápio, tirando as diferenças no programa de cada candidato, os franceses terão que escolher entre dois modelos: o atual - mais social, assistencialista, estatal, mas que está em crise - ou um mais liberal.

Doze candidatos estão na disputa. Mas, na realidade, a escolha é entre quatro. Por ordem de preferência nas sondagens, são: Nicolas Sarkozy, da UMP, partido da direita, que diz que os franceses precisam trabalhar mais para sair da morosidade econômica; Ségolène Royal, do Partido Socialista, que propõe relançar a economia, mas mantendo o "modelo francês", que limita o trabalho em 35 horas semanais; François Bayrou, do UDF, de centro, que oscila entre direita e esquerda; e o extremista da direita Jean-Marie Le Pen, a ruptura total.

Como nenhum tem maioria, a batalha de hoje será pela escolha dos que irão disputar o segundo turno, em 6 de maio. A França não esqueceu o trauma de 2002, quando Le Pen derrubou o socialista Lionel Jospin e se classificou para o segundo turno. Foi surpresa total. Assustados, os franceses votaram em massa em Jacques Chirac. Nenhum instituto de pesquisa detectou a ascensão de Le Pen. Por um motivo: seu eleitorado, por temer perseguição, só se revela nas urnas.

Dilema entre crescer e ajudar

Muitos querem um confronto entre esquerda e direita no segundo turno. Pelo menos assim, argumentam, a eleição será o confronto de idéias, entre dois modelos. E se Ségolène Royal não conseguir?

- Matematicamente, o risco existe. Tudo pode acontecer nesta eleição. Ninguém tem condições de fazer prognósticos - disse Fabrice Tarrit, da Survie, que é parte de uma rede de ONGs francesas que interpelou todos os candidatos.

A França, sexta maior economia industrial do mundo, acaba de bater o recorde de velocidade do TGV (trem de grande velocidade, 575km/h) e suas maiores empresas cotadas na Cac40 (principal índice da Bolsa de Paris) estão batendo recorde de lucro. Mas os indicadores econômicos do país mostram que o "modelo francês" está desgastado. A França teve um crescimento medíocre nos últimos anos (média de 1,5%). A taxa de desemprego - entre 9% e 10% - é das mais altas da Europa. Os salários estagnaram em termos reais e a dívida pública cresceu mais do que nos vizinhos europeus, batendo hoje 66% do Produto Interno Bruto (PIB). E nos últimos 25 anos, a França passou do 7º ao 17º lugar no mundo em PIB per capita.

A França tem muitos pontos fortes. Por exemplo, um sistema de saúde que custa caro, mas que está entre os melhores do mundo. Os franceses também estão vivendo mais tempo -- a esperança de vida aumenta um trimestre por ano - e tendo mais filhos: dois por mulher, o que colocou o país no segundo lugar do ranking de fecundidade na Europa, depois da Irlanda. Na França, paga-se uma das mais baixas taxas de eletricidade, porque o país investiu maciçamente em energia nuclear. O país está todo conectado por uma rede eficiente de TGVs, um orgulho nacional.

- A França continua sendo uma marca muito boa, mesmo que sua imagem tenha se degradado um pouco - disse Christian de Boissieu, diretor do Centro de Observação Econômica.

Na proteção social, o país é dos mais generosos. O governo oferece ajuda para todo tipo de situação: doença, desemprego, envelhecimento, exclusão. Cerca de 2,5 milhões de pessoas se beneficiam do "RMI", uma ajuda do governo a famílias pobres. São 433 por pessoa, 650 por casal. E para cada criança a mais na família acrescenta-se 173. E é aí, segundo muitos, que reside o problema: as despesas com o setor social aumentaram mais rápido do que a riqueza nacional. A França sustenta um modelo que não se comporta para um país que não cresce suficientemente. E há abusos no sistema.

Os que votam em Sarkozy querem, essencialmente, atacar isso, como Michel Bosshard, dono do restaurante Le Quincy:

- As pessoas não querem trabalhar. A França precisa de um eletrochoque. Eu voto Sarkozy para acabar com esse bordel.

A revista "Le Point" fez um levantamento dos beneficiários desta França generosa, e chegou à conclusão de que vários segmentos da população e da economia ganham com isso. Setenta por cento da renda dos agricultores vêm dos cofres públicos, há 730 tipos de ajuda às empresas. Ao mesmo tempo, os empresários se queixam de encargos elevados e muitos impostos. "Ajudas e subsídios de toda espécie permanecem uma especialidade francesa", concluiu a revista.

E a batalha que se trava nas urnas hoje é essencialmente em torno desde modelo. Os franceses vêem outros países crescendo mais rápido e se perguntam por quê. Ségolène diz que não quer uma sociedade dependente de ajuda para tudo. Mas para seus críticos, seu programa não muda a situação: ela quer manter a lei que limita o trabalho em 35 horas semanais, promete aumentar o salário mínimo, abolir o contrato mais flexível de trabalho nas pequenas empresas, e quer criar 500 mil empregos subsidiados para jovens recém-formados. Tudo isso, sem aumentar impostos, num país endividado. Sarkozy quer reduzir impostos, flexibilizar as leis trabalhistas e fazer os franceses trabalharem mais. Para o filósofo Marcel Gauchet, o que incomoda os franceses é a falta de resposta dos políticos, de direita ou esquerda, à questão central da globalização.

"Não é a questão da imigração a prioridade dos franceses, é a transformação profunda do contexto internacional: o que vamos ser neste mundo que não une mais? Ninguém soube responder de forma convincente", disse à "L"Express".