Título: Usinas: cruz e caldeirinha
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 27/04/2007, O Globo, p. 2

O dissenso ambiental no interior do governo é mais uma explicitação das distâncias entre utopia e realidade para os partidos que chegam ao poder. Se a ministra Marina Silva vem servindo à ética de suas convicções, o presidente Lula e o ministro Silas Rondeau estão respondendo à ética da responsabilidade, ao imperativo de viabilizar a oferta de energia para assegurar o crescimento e seus benefícios.

Lula e Marina têm uma relação especialíssima, que vem resistindo aos embates periódicos dentro do governo. Neste caso, depois de endurecer, ele ontem adotou, lá no Chile, um tom mais conciliador. Deixou para seu vice, José Alencar, a assinatura das medidas que promovem mudanças na estrutura do Ministério do Meio Ambiente. A mais importante delas é a que cria o Instituto Chico Mendes, como órgão de proteção e conservação da biodiversidade, ficando o velho Ibama encarregado apenas do licenciamento ambiental. Desafogado, o órgão poderia ganhar mais celeridade no cumprimento de suas tarefas. Por mais que Marina jure já ter planejado essa divisão do Ibama, a leitura que fica é a de que elas decorreram das pressões recentes do presidente (secundadas pelos ministros Dilma Rousseff e Silas Rondeau), irritados com a demora no licenciamento das usinas hidrelétricas do Rio Madeira. O terror a um apagão que perpassa a área energética do governo foi catalisado pelos sinais de que o Ibama pode negar a licença, alegando o risco de assoreamento do lago e ameaça a certos peixes.

Com muita naturalidade, Marina dizia ontem que as mudanças já estavam planejadas, ao participar, na Câmara, da celebração dos dez anos da Comissão da Amazônia. Os deputados Vanessa Grazziotin e Marcelo Serafim, presidente e vice da comissão, providenciaram um café da manhã com todos os sabores da floresta. Disse ainda a ministra, na passagem pela Câmara, que não há prazo algum para a concessão do licenciamento das obras no Madeira. O ministro Rondeau andou dizendo que só espera até o fim de maio. Depois disso, o governo buscaria outras fontes para garantir o aumento das oferta de energia, partindo inclusive para a construção de Angra III.

No Congresso, a área energética parece ter mais aliados que a ambiental. Contra os riscos alegados pelo Ibama, o senador Renato Casagrande (PSB-ES) apresenta projeções alarmantes sobre o aumento das emissões de CO², caso seja preciso substituir as hidrelétricas do Norte por outras fontes de eletricidade. Com a matriz elétrica de hoje, o Brasil emite cerca de 40 milhões de toneladas de CO² anualmente. Se construir todas as hidrelétricas do Norte, em 2016 estará emitindo 106 milhões de toneladas. Se fizer todas, menos as do Madeira, estará emitindo 180 milhões de toneladas. Se fizer todas, menos Belo Monte, as emissões vão bater em 243 milhões de toneladas. Os dados são da Secretaria de Gestão e Planejamento do Ministério de Minas e Energia (MME).

- Essas projeções mostram que a luta contra as hidrelétricas do Norte pode ser um tiro no pé. Buscando energia de outras fontes, causaremos dano maior ao planeta, aumentando o aquecimento - diz ele.

Voltando a Marina e o presidente, a temperatura deve baixar agora. Lula deseja muito o início das obras no Madeira, mas sabe o quanto vale, para o conceito internacional de seu governo, ter Marina no ministério. O MME quer prazo, mas Lula não deve impô-lo à ministra.