Título: Distorção
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 23/05/2007, O País, p. 4

O contingenciamento das verbas orçamentárias e a distribuição de cargos no segundo escalão do governo transformaram-se nos principais mecanismos de disciplina partidária de que o Executivo se utiliza para conseguir montar coalizões congressuais que sejam efetivas, se traduzam em votos que viabilizem as principais ações do governo. No início do governo Lula, em uma reunião do comando político no Palácio do Planalto, ficou definido que o Orçamento continuaria a ser utilizado como instrumento do governo para controlar sua base aliada, prática que vinha sendo adotada pelo governo anterior com grande eficácia, embora criticada pelo PT.

Na apuração do escândalo dos sanguessugas, ficou evidenciado que o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, não liberava as emendas sem que o deputado ou senador se comprometesse a votar com o governo em determinados assuntos. Assim, além do mensalão, o governo utilizava também as emendas dos parlamentares para negociar apoio no Congresso, o que em si não representa nenhuma ilegalidade, já que as verbas em disputa são aprovadas no Orçamento.

Essa é uma característica do Orçamento autorizativo, que muitas vezes pode representar uma distorção na relação do Executivo com o Legislativo: o governo manipula politicamente a liberação de certas verbas e tranca outras tantas para fazer o superávit fiscal necessário.

Como o Orçamento é meramente indicativo, o Executivo tem condições de apenas liberar as parcelas do Orçamento que lhe convierem, de acordo com a prioridade correspondente a seu projeto de governo ou às necessidades políticas, infelizmente nem sempre nessa ordem.

Esse sistema, porém, é uma deformação do processo democrático, e, se é legal na aparência, gera um ambiente onde as pressões políticas, que não raro beiram a chantagem, são a tônica, e alimenta a corrupção, como estamos vendo seguidamente nos escândalos que têm como origem as emendas parlamentares e a liberação de verbas nos ministérios.

Segundo o cientista político Sérgio Abranches, todo presidente que se dispõe a ceder os cargos-chave para esse jogo de pressão, e se compromete com as liberações de verbas para projetos-chave, consegue pôr dentro de sua coalizão em torno de 70% dos parlamentares.

Não sendo impositivo, o Orçamento se transforma em uma peça de ficção, onde verbas inexistentes são aprovadas e depois não são liberadas, e onde obras não prioritárias acabam sendo realizadas - ou quase - apenas porque a empreiteira encontrou o caminho das pedras da liberação da verba. A ponte do Maranhão, ligando o nada a coisa nenhuma, que já se transformou no símbolo da corrupção brasileira, é exemplar dessa situação.

Abranches chama a atenção para o fato de que essas redes de corrupção "entranhadas na administração pública e que são operacionalizadas por meio de nomeações políticas negociadas no processo de formação das coalizões de governo comprometem dois processos centrais na economia política da democracia: o financiamento de campanhas e as práticas fiscais". O financiamento das campanhas será motivo de debate durante a discussão da reforma política, e, mesmo que o financiamento público integral não venha a ser aprovado, alguma decisão terá que ser tomada para que os políticos tenham mais limites nas doações recebidas e para que o caixa dois, que continua existindo, seja punido com maior rigor.

O que Abranches critica é uma política de controle de gasto público "baseada no contingenciamento continuado, por prazo longo, sem perspectiva de reforma ou solução definitiva para o equilíbrio fiscal".

O preço de montar uma coalizão governamental nessas condições seria, segundo o cientista político, "a concessão permanente e, portanto, a perda de qualquer visão estratégica na gestão de recursos públicos e o risco de escândalos de corrupção, que acabam, inevitavelmente, estourando".

Outra questão que também ficou evidente no decorrer das investigações deste mais novo escândalo é o que Abranches chama de a "insustentável concentração de poderes e recursos na União", que acaba fazendo com que uma obra da Prefeitura de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, surja como um dos pivôs dos escândalos a partir da necessidade de sua liberação por Brasília.

"Como todo o fluxo de decisões e verbas começa e acaba em Brasília, nacionalizam-se as redes de corrupção, e seu comando acaba se localizando sempre no topo da hierarquia política e administrativa nacional", diz Abranches. Uma outra vertente desses escândalos, que estava evidente muito antes de estourar a Operação Navalha, é o interesse dos partidos políticos pelas nomeações em postos-chave nas estatais.

"O governo Lula paga, também, com esses escândalos, o preço por seu estatismo", lembra Abranches. "Ao interromper a privatização do setor elétrico, reimplantando o monopólio estatal da geração, transformou empresas como Furnas em nódulos centrais dessas redes".

Muitos dos políticos que se colocam contra a privatização o fazem para não perderem cargos onde podem exercer sua influência política, e é isso que explica, lembra Sérgio Abranches, "a disputa exacerbada entre facções do PMDB - envolvendo as representações na Câmara e no Senado e o próprio ex-ministro Silas Rondeau - pela presidência de Furnas" e por diretorias na Petrobras, na Caixa ou no Dnit.

Sérgio Abranches considera que "esse é um componente central do risco político no Brasil, que interfere decisivamente na qualidade da gestão macroeconômica, na sua dimensão fiscal, e torna a sustentação política do presidente da República um processo instável, de alto risco, e alta propensão a desembocar em escândalos de corrupção".