Título: Visita ao passado
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 17/06/2007, Economia, p. 32

Uma reforma política em 1881 foi comemorada pelos liberais, mas ela reduziu o eleitorado de um milhão para 100 mil, ao proibir o voto do analfabeto. A Lei do Ventre Livre foi votada após anos de brigas: deputado teve que ser apanhado em casa, e houve cenas de pugilato. O manifesto republicano de 1870 não defendeu o fim da escravidão. O intelectual José de Alencar dizia que a lei era contra os interesses nacionais.

Mudar, o Brasil muda. Mas lentamente. Sua resistência às mudanças parece atávica para quem lê o passado com olhos de hoje. Iniciei curtas férias recentes querendo fugir da conjuntura. Por isso me abriguei no Segundo Reinado, no livro "D. Pedro II", de José Murilo de Carvalho. Lá esbarrei em certos defeitos presentes.

O Imperador pediu ao então Visconde de São Vicente que lhe preparasse um projeto para a libertação dos escravos ainda não nascidos, e ele fez cinco versões que foram levadas ao Conselho de Ministros em 1866. O presidente do Conselho, o Marquês de Olinda, ficou contra a discussão do tema. O assunto sumiu de pauta, alguns atacavam a idéia diretamente, nenhum partido a defendia. Mais explícito, José de Alencar tornou públicas suas divergências em cartas abertas ao imperador. "O monarca, segundo o autor de Iracema, queria agradar aos filantropos europeus à custa dos interesses nacionais", registra o livro. O romancista dizia que a escravidão era um fenômeno histórico e que não podia ser resolvida "a golpes de lei". Na visão dele, a escravidão sempre havia cumprido um papel "civilizador" e, no Brasil, era ainda "indispensável".

O Visconde de Rio Branco a defendeu na Câmara, depois do fracasso de São Vicente em conseguir apoio à proposta. Em 1867, o ministério progressista decidiu incluir o tema na "Fala do Trono", um comunicado ao país feito na abertura dos trabalhos legislativos. "Houve novo escândalo", conta José Murilo. Nos anos seguintes, não foi mais incluído. Em 1871, o assunto dominou toda a pauta do Congresso e, em setembro, foi aprovado. "Os deputados tinham que ser acompanhados de perto. João Alfredo, ministro do Império e futuro autor da Lei Áurea, pronunciou 21 discursos nas duas casas do Parlamento. Em algumas ocasiões, o debate degenerou em pugilato", diz o livro.

Resistiam à Lei do Ventre Livre as províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais e do Espírito Santo, que tinham 57% dos 1,5 milhão de escravos que existiam. Os líderes políticos dessas províncias tinham muitas divergências entre si, mas a superaram contra o "inimigo" comum. Foi criado o Clube da Lavoura para evitar o fim do regime escravocrata. Segundo o historiador, uniram-se conservadores, dissidentes, liberais, republicanos. O argumento poderoso que os unia? Diziam que a idéia era de inspiração externa. Velho vício brasileiro: um bom sofisma para evitar a mudança.

O jornal "A República" dizia que o projeto tinha sido elaborado "nas trevas do Palácio", à revelia da Nação. Um projeto despótico, afirmava. "A se dar crédito às posições dos críticos, inclusive republicanos, o abolicionismo era o despotismo, o escravismo era a democracia", conclui José Murilo. A contradição dos republicanos tinha um motivo: havia muitos donos de escravos, entre eles, inclusive, o líder Campos Salles, que tinha vasta escravaria nas suas terras em Campinas.

Na Lei do Sexagenário, outra batalha. O projeto foi descaracterizado no Congresso. Os opositores queriam cinco anos a mais, além dos 60, em que o escravo trabalharia para indenizar seus donos. Aliás, a idéia da indenização foi amplamente defendida, por várias correntes do republicanismo, na época da discussão principal: a Lei Áurea. Quando, enfim, ela foi aprovada e sancionada sem esse monstrengo, a Princesa Isabel ouviu do Barão de Cotegipe a famosa frase: "Redimiu uma raça e perdeu o trono".

Foram muitas as discussões em torno das reformas políticas, e alguns debates parecem os de hoje. Os senadores resistiam com medo de perder a vitaliciedade. Houve quedas de gabinete, dissolução do Congresso, para se conseguir votar uma das reformas: a Lei Saraiva, que modernizava o processo eleitoral ao introduzir a eleição direta. O autor da lei convenceu o imperador a fazer a proposta por lei ordinária, e ela passou mais rapidamente. Ruy Barbosa disse que a lei representava mais do que 50 anos de reformas conservadoras. Mas ela tinha um problema: ao acabar com o voto dos analfabetos, reduziu a 10% o tamanho do eleitorado. Ainda que o voto do analfabeto se prestasse a manipulações, não ocorreu aos liberais ou aos progressistas que o melhor a fazer não era acabar com o voto dos que não sabiam ler e escrever, mas educar o povo para o exercício do direito do voto. José Bonifácio, o moço, disse na época que, ao excluir os analfabetos, a reforma havia criado uma oração sem sujeito, uma democracia sem cidadãos. O voto em lista da reforma política de hoje o que é se não tirar poder de decisão do eleitor?

Dias depois de fechar o livro, li o último número de uma revista acadêmica, e lá estava um artigo tentando dar consistência econômica à idéia de que a escravidão foi "suave" no Brasil. Há várias lições em "D. Pedro II" para quem quer entender o debate de hoje, a condescendência com nossos erros e essa mania de revestir de falsa modernidade a resistência à mudança. Encontram-se lá também, como hoje, as críticas dos áulicos aos jornalistas e a insistência nas pressões por se censurar a imprensa. Pressões às quais o imperador sempre resistiu. Foi curioso, mas, ao visitar o passado, não saí do tempo presente.