Título: Apesar de tudo
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 07/07/2007, Opinião, p. 7
Antes, corríamos riscos e tínhamos objetivos. Agora, não há mais objetivos e os riscos parecem não existir. Corríamos riscos de morte, tortura, prisão, exílio, mas tínhamos adiante, palpável, o sonho a realizar: a construção de uma sociedade justa e democrática, com igualdade e plena liberdade. O fim da exploração e da pobreza. A primazia da cultura, sobre o consumo material. E tínhamos certeza, certeza absoluta, de que nossos sonhos se realizariam. Valia a pena correr o risco. Era assim a prática da política nos meus anos de juventude. Havia uma razão para a vida e para a morte, e um céu posterior: a história com a democracia e a justiça.
Acreditávamos que, estatizando a propriedade, distribuiríamos a renda; que a revolução se faria organizando os operários; que o planejamento acabaria com a ineficiência. Descobrimos que isso seria impossível, e que os resultados não seriam aqueles que esperávamos.
Hoje, a política não exige a coragem de enfrentar a morte, mas o cinismo de enfrentar a desonra da omissão, da impotência, da defesa de privilégios e interesses corporativos, próprios ou de financiadores de campanha. Às vezes, envolve o risco de tangenciar ambientes de corruptores. E não parece haver propósito.
A política ficou sem utopia, sem finalidade histórica, prisioneira do seu dia-a-dia. E se perdeu nessa rotina vazia. Por isso, não atraímos o aplauso dos adultos, nem a militância dos jovens. A política virou profissão, e não função. Esfera de acordos e conchavos, e não de ação transformadora. Os partidos que há pouco pareciam resistir se perderam quando chegaram ao poder: sem utopia, sem vigor transformador.
Muitos acham um horror os anos de chumbo da ditadura. Outros, os anos vazios da democracia.
Apesar disso, ainda há objetivos adiante, e os riscos têm de ser enfrentados. Com o mesmo cuidado com que nos protegíamos da polícia quando descumpríamos as leis da ditadura, fazendo o que era preciso para subverter a ordem ditatorial implantada, agora precisamos cultivar o rigor pessoal no dia-a-dia, no uso de recursos públicos, no cumprimento das leis, na permanente vigilância contra desvios e desesperança. E, sobretudo, manter o foco em projetos utópicos, no compromisso com a transformação social no país.
O objetivo não é mais a democracia política, já conquistada. Já não é mais a igualdade socialista, desmoralizada, tecnicamente impossível e eticamente desnecessária. O que nos move agora deve ser retirar o Brasil do atraso e oferecer a mesma chance a cada brasileiro. O atraso só será superado quando nosso país se tornar um centro produtor de capital-conhecimento. E isso só será possível em função da dinâmica criada por uma revolução na educação de qualidade para todos.
Isso é preciso e é possível. O Brasil dispõe de todos os recursos necessários. Nosso desafio, maior do que foi derrubar a ditadura, é convencer os pobres de que é possível, e os ricos de que é preciso. Propor as medidas corajosas e revolucionárias, e reservar os recursos necessários.
Vale a pena fazer política para construir essa utopia, mesmo que seja apenas para convencer os brasileiros de que é necessário, preciso e possível. Vale a pena correr riscos, ainda que sejam maiores do que antigamente. Antes, o pior que podia acontecer era morrer com honra, lutando. Agora, é viver com a honra ameaçada pela omissão e pela lama.
A política na sua ação cotidiana é um dos jogos mais chatos do ser humano. Mas quando ela é feita como o trabalho de operários - com dedicação e voltada para a construção do futuro - torna-se uma das mais excitantes atividades do homem. Política com um propósito utópico para a nação, com vontade de mudar a realidade, dedicação para convencer os eleitores e articular as lideranças. Fugindo da rotina do dia-a-dia e das tentações do poder.
Apesar de tudo, é preciso continuar lutando. E também sonhando.
CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).