Título: Vírus: aumenta mistério
Autor: Jansen, Roberta; Marinho, Antônio
Fonte: O Globo, 05/12/2008, Ciência, p. 38

Autoridades da África do Sul dizem que engenheiro morto não teria arenavírus.

Autoridades de saúde da África do Sul questionaram ontem a linha de investigação adotada pelo governo brasileiro para esclarecer a morte do engenheiro sul-africano William Charles Erasmus, de 53 anos, vítima de febre hemorrágica ainda sem causa determinada. O corpo do engenheiro foi cremado ontem no Memorial do Carmo, no Caju, seguindo recomendações da vigilância sanitária. O Ministério da Saúde ampliou de 65 para 75 o número de pessoas sob observação devido à possibilidade de terem tido contato com secreções corporais de Erasmus.

Uma das principais suspeitas do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz é que Erasmus teria sido contaminado por um arenavírus responsável por um surto que matou quatro pessoas na clínica Morningside, em Johannesburgo, entre setembro e outubro. Ele se submeteu a uma cirurgia ortopédica de ombro nessa mesma clínica há pelo menos 15 dias, o que, segundo as autoridades brasileiras, criaria um "vínculo epidemiológico".

De acordo com o Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis da África do Sul, no entanto, é altamente improvável que a morte do empresário tenha sido causada pelo mesmo arenavírus ainda desconhecido que provocou o surto na clínica. Especialistas brasileiros compartilham da opinião.

- Acho é extremamente improvável, ele não apresentava os fatores de risco - afirmou a médica Lucille Blumberg, do instituto, em entrevista ao jornal "Guardian" da África do Sul. - O termo vírus é comumente aplicado de forma genérica. Repito, ele não tinha os fatores de risco. Além disso, do ponto de vista cronológico, não faz absolutamente sentido algum.

A cirurgia teria ocorrido entre o fim de outubro e início de novembro. O período de incubação de um arenavírus é de, no máximo, 21 dias. William só começou a ter sintomas no dia 27, quando já estava no Brasil.

Além disso, como aponta o infectologista da Unicamp Luiz Jacintho da Silva, o arenavírus se transmite na fase sintomática, ou seja, seria preciso que, no momento em que William esteve internado na clínica, o surto da doença ainda estivesse em andamento.

- A transmissão dentro de um hospital acontece de pessoa para pessoa - explicou o especialista. - Então, está faltando uma cadeia de pessoas doentes que liguem esse cidadão aos primeiros casos desse surto. Para que esse hospital estivesse ainda agora transmitindo, teríamos que ter diversos casos internados e um hospital completamente sujo.

Após o surto, que matou quatro pessoas e deixou ainda uma quinta doente, 121 outras que tiveram contato com os doentes foram monitoradas e nenhuma delas teve sintomas. Autoridades sul-africanas não sabem qual foi o arenavírus que causou o surto - tudo indica que se trata de um vírus desconhecido - mas exames estão em andamento nos Estados Unidos e os resultados serão divulgados na próxima semana. De qualquer forma, o surto na clínica foi dado oficialmente como encerrado.

As autoridades brasileiras de saúde não explicam por que motivos concretos adotaram essa hipótese como a principal linha de investigação. Tampouco informam a cronologia oficial dos fatos, o que poderia justificar a hipótese. Ontem, tanto a Fiocruz quanto o Ministério da Saúde não responderam a pedidos de esclarecimento sobre esses pontos e também não quiseram comentar as observações dos sul-africanos. Eles investigam também a hipótese de leptospirose.

Cremação e esterilização das roupas e lençóis

Para o infectologista Luiz Jacintho, as autoridades brasileiras deveriam adotar outras linhas de investigação como prioritárias. Especialistas ponderam que outras febres hemorrágicas da África do Sul, como Criméia-Congo e Vale do Rift, além de doenças mais comuns, como leptospirose, seriam hipóteses mais prováveis.

O corpo do empresário foi cremado ontem às 18h15m no Memorial do Carmo, no Caju, numa operação de seis horas, acompanhada por representante da Vigilância Sanitária. Em seguida, o Grupamento de Operações com Produtos Perigosos (GOPP) do Corpo de Bombeiros fez a descontaminação do local. No final do processo, um funcionário que operou o forno retirou as cinzas do caixão de zinco. Elas serão colocadas numa urna e levadas ao Palácio do Itamaraty. O que restou do caixão será destruído pelo Corpo de Bombeiros. O Tribunal de Justiça do Estado Rio autorizou a cremação sem o consentimento da família.

Estava prevista para ontem também a esterilização completa de todos os resíduos hospitalares do paciente, ou seja, de sondas, seringas e até lençóis e o colchão usado por ele. O procedimento, a cargo da empresa uruguaia Aborgama, consiste em submeter os resíduos a temperaturas superiores a 150 graus Celsius, o que é suficiente para matar qualquer tipo de vírus. Após a esterilização, os rejeitos serão encaminhados para um aterro sanitário, segundo informou a empresa.

A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) divulgou nota ontem afirmando que o Brasil seguiu corretamente todas as exigências de controle epidemiológico.