Título: Os limites de um juiz
Autor: Siro Darlan
Fonte: O Globo, 12/12/2008, Opinião, p. 7

Lutamos tanto pela reconquista do estado democrático de direito, e escrevemos com tanta paixão a Carta Cidadã, que não podemos aceitar qualquer retrocesso do tipo os fins justificam os meios: deve haver um limite à atuação do particular, assim como do Estado. Nos Estados autoritários não há limites para o exercício do poder: ali o poder é exercido ao talante de quem detém o poder.

No Brasil vive-se o paradoxo da busca da concretude do projeto constitucional - a construção de uma democracia em sentido material, na qual a efetiva participação dos cidadãos nas decisões políticas some-se ao respeito aos direitos fundamentais. Parcela considerável da sociedade, ainda influenciada pelos anos da ditadura, acredita que a Constituição representa um óbice aos seus desejos pessoais.

Essa visão não é nova. Carl Schmitt, constitucionalista alemão filiado ao partido nazista, ao afirmar que "nós somos a Constituição", apontava para a desnecessidade de limites e, não por acaso, declarava-se contrário à idéia de um controle do controle da constitucionalidade dos atos estatais (para o jurista do início do século XX, a atribuição para esse "controle" deveria ser do presidente do Reich). Também no fascismo e no stalinismo procurava-se justificar a violência e a negação de direitos a partir de uma afirmada "vontade popular". A negação dos direitos das minorias, historicamente, só foi possível em razão do "sentimento popular" ou da "vontade da maioria".

Recentes acontecimentos retratam um confronto entre concepções democráticas e autoritárias, e causa especial preocupação a postura de algumas instituições, como a Polícia Federal, parte do Ministério Público e da magistratura, que, mesmo com boas intenções (e de boas intenções o inferno está cheio), transigem com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição e nos tratados internacionais. Ao ceder à tentação populista, magistrados passam a julgar de acordo com a opinião pública (por vezes, forjada na desinformação), ora com a opinião publicada, e esquecem da natureza contramajoritária da magistratura, que tem o dever legal de atuar contra maiorias de ocasião sempre que for necessário à garantia dos direitos fundamentais.

Essa parcela da magistratura ignora que a legitimidade de sua atuação não advém do voto popular, mas do respeito à Constituição Federal. Sem pudor, esquecem que sua função é de garante da Constituição e passam a decidir de forma arbitrária e de acordo com suas próprias convicções ou perversões; descumprem a lei, a pretexto de melhor cumpri-la (na seara penal, com o intuito de punir quem viola a lei, violam a lei). Arriscam os direitos das minorias, ao não reconhecer que os direitos fundamentais são "trunfos" democráticos contra a maioria (Dworkin). Em suma, esses magistrados não acreditam em limites externos à sua atuação.

A Constituição não é um mero pedaço de papel, com idéias abstratas e desconsideráveis. As regras e princípios inscritos no texto, a partir de intérpretes comprometidos com a democracia, transformam-se em normas que constituem (e vinculam) a sociedade, em especial servem de limites intransponíveis a toda e qualquer atuação, particular ou pública. É verdade que o intérprete deve aplicar a lei com os olhos voltados para a sociedade, mas não para conservá-la tal como está.

Um juiz não pode, por exemplo, reproduzir em suas decisões o desapego aos valores constitucionais, que se vê nas ruas; não pode igualmente ignorar os valores constitucionais do direito à comunicação social, assim como o respeito à dignidade da pessoa humana e direito à privacidade e intimidade. O juiz comprometido com a democracia, por outro lado, atua de forma transformadora, para dar concretude, para tornar real o projeto constitucional.

Na concepção democrática da magistratura exige-se que o juiz se interprete ao interpretar a lei, como forma de podar preconceitos e pré-compreensões que contrariem a Constituição. Por vezes, o magistrado se depara com situações em que é mais fácil ignorar os limites constitucionais para alcançar os fins desejados. Porém, sobretudo nesses casos, deve reafirmar seu compromisso com a democracia, reconhecer que sua vontade não se sobrepõe à vontade do legislador constituinte e atender às "regras do jogo" democrático, que tem como antítese o arbítrio e a falta de limites ao exercício do poder.

SIRO DARLAN é presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente e integrante da Associação Juízes pela Democracia.