Título: Uma trincheira na crise
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Globo, 01/03/2009, Opinião, p. 7

A manutenção do nível de emprego e renda da população talvez se constitua na principal linha de defesa contra a transformação da atual recessão internacional numa depressão de longo prazo, tal como aconteceu em 1929. Por isso, preocupam os números de alguns países, como os dos EUA, em que a taxa de desemprego subiu 2,7 pontos percentuais entre janeiro de 2008 e janeiro de 2009, levando 4,1 milhões de americanos ao desemprego em apenas um ano. No Brasil, embora a taxa desemprego tenha subido apenas 0,2 ponto percentual no mesmo período, recentes ondas de demissões trazem inquietação.

Numa conjuntura de queda de demanda e grande incerteza, a tentação de demitir é grande. Do ponto de vista microeconômico, parece solução adequada que livra a empresa de um custo à primeira vista desnecessário. Entretanto, do ponto de vista macroeconômico, cada demissão é um golpe contra a demanda já em baixa e a confiança que mingua, o que gera um círculo vicioso que aprofunda a recessão e tem consequências negativas para todos, inclusive para as empresas que pensaram em se proteger demitindo.

Na grande recessão de 1929, os EUA, num primeiro momento, não tomaram nenhuma medida efetiva para impedir a escalada do desemprego. O presidente Hoover decidiu não implementar programas de apoio a desempregados e aos mais pobres, argumentando que tais programas os corromperiam. E as empresas norte-americanas, de um modo geral, adotaram a estratégia de demitir como uma primeira medida contra a queda dos faturamentos. O resultado foi que o desemprego aberto nos EUA subiu, em princípios da década de trinta do século passado, para cerca de 25% da população ativa. Essa profunda desagregação do mercado de trabalho norte-americano retardou extraordinariamente a recuperação da economia dos EUA, a qual só alcançou a sua dinâmica pré-1929 em 1941, já em plena guerra.

Portanto, demissões, numa conjuntura de crise sistêmica e grave, devem se constituir num último recurso a ser usado com moderação. Antes dele, há mecanismos mais racionais que podem e devem ser utilizados, como as férias coletivas, o banco de horas e, acima de tudo, as negociações entre empresários, trabalhadores e governo para implementar estratégias consensuais de enfrentamento à crise. Muito embora haja, no Brasil, uma resistência histórica de alguns setores empresariais a compartilhar ganhos e responsabilidades com os trabalhadores, a hora do empresariado brasileiro demonstrar responsabilidade social é esta. Câmaras Setoriais podem se converter num importantíssimo foro de negociação entre governo, empresários e trabalhadores para administrar, setor a setor, os efeitos da crise e a manutenção, até onde possível, dos níveis de emprego e salário.

Entretanto, é tarefa primordial dos governos assegurar a proteção social dos setores mais vulneráveis à crise e aos desempregados. Por isso, é fundamental manter programas como o Bolsa Família e o Seguro Desemprego, assim como sustentar a política de recuperação do salário mínimo e os mecanismos de crédito para os mais pobres, instrumentos vitais para se evitar o mal-estar social causado pela crise e sedimentar o recente ciclo da expansão da economia brasileira no mercado interno. Numa conjuntura de contração do comércio mundial, trata-se de importante linha de defesa. Ademais, deve-se promover a requalificação dos trabalhadores, visando à retomada do crescimento em melhores condições, e focar o investimento público nos setores de maior efeito multiplicador de empregos, como o da construção civil, que poderia desenvolver um amplo programa de construção de habitações populares.

No estudo "Wage Inequality Report" divulgado pela OIT no final do ano passado, o Brasil se destaca como um dos países que mais cresceram com distribuição de renda no período 2004-2007, uma das exceções num mundo que cresceu mantendo ou acentuando suas desigualdades. Essa característica do nosso desenvolvimento recente tem de ser mantida na atual conjuntura. Junto com a defesa do emprego, a manutenção da renda dos mais vulneráveis pode criar uma trincheira difícil de ser transposta, mesmo pela recessão mais dura.

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).