Título: Comensal indigesto
Autor: Berlicnk, Deborah
Fonte: O Globo, 01/04/2009, O Mundo, p. 21

Lula abandona almoço no Qatar ao perceber que ditador sudanês se sentaria a seu lado

O constrangimento que a diplomacia brasileira mais temia aconteceu. Num almoço com os líderes dos países árabes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi surpreendido ao ser colocado na mesa ao lado de um homem que tem um mandato internacional de prisão: o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, indiciado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra e contra a Humanidade na região de Darfur. O conflito causou a morte de 300 mil pessoas desde 2003.

Lula abandonou inesperadamente o almoço. Não é um gesto comum do presidente. Ele teria saído da mesa quando Bashir chegou (atrasado), segundo um assessor da Presidência.

Cumprimentou o líder sudanês e o presidente da Somália, Sharif Sheikh Ahmad, que estava a seu lado, e saiu dizendo que daria um telefonema, segundo o mesmo assessor.

¿ Não! Não sentaram juntos. Não trocaram uma palavra ¿ garantiu o assessor.

O governo brasileiro foi pego de surpresa. Oficialmente, nada foi dito sobre a posição do Brasil em relação a Bashir. Segundo a fonte, ¿Lula saiu do almoço para descansar¿, pois enfrentaria uma longa viagem para Paris, e depois, para Londres, para a reunião do G-20. Quando um jornalista abordou o presidente a caminho de uma reunião, perguntando como foi o almoço, Lula respondeu apenas: ¿ Só comi salada.

Pelo cardápio, Lula comeu aspargos ao vinagrete, com um brioche de trufas. O que não comeu ¿ mas o ditador sudanês, sim ¿ foi um filé de carneiro coberto por vagem, e sobremesas que iam de mousse de chocolate a especialidades árabes.

Chávez defende Bashir e ataca Bush

Na verdade, o presidente não teve muito tempo para descansar. Pouco depois estava no plenário ouvindo o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, defendendo Bashir e dizendo que, no lugar dele, quem deveria ir para a corte era o ex-presidente dos EUA George W. Bush e um líder israelense.

¿ Por que (o TPI) não ordena a captura de Bush? A captura do presidente de Israel? A Venezuela se alinha com a Liga Árabe ¿ disse Chávez, confundindo o presidente de Israel, Shimon Peres, cujo cargo não permitiu que tivesse qualquer influência nas invasões do Líbano e da Faixa de Gaza, decididas pelo agora ex-primeiroministro de Israel Ehud Olmert.

Chávez ainda convidou publicamente o presidente sudanês a desafiar o mandado internacional de prisão indo à Venezuela. Em entrevista à imprensa brasileira, ele disse: ¿ Por que não buscaram Bush? E a invasão no Iraque, os mortos nos bombardeios? Isso é uma arma política.

Querem atropelar o Terceiro Mundo.

São os resquícios do imperialismo.

Se o presidente cometeu algum crime, cabe à Justiça de seu país julgar.

A Venezuela ratificou o acordo que criou o TPI. Mas Chávez diz que lá não é lugar para chefes de Estado, por eles terem ¿imunidade internacional¿. E ainda cobrou uma posição do Brasil: ¿ O Brasil deveria se sentir atropelado, assim como todos os países do Terceiro Mundo.

O ministro do Exterior, Celso Amorim, perguntado se os líderes sul-americanos discutiriam o assunto, disse: ¿ Não está na agenda¿assim eu espero.

Bashir foi a Doha para uma reunião da Liga Árabe, segunda-feira, que deu apoio total a ele. Ele aproveitou e ficou no Qatar para a reunião de 22 países árabes com 12 sul-americanos. Conseguiu, com isso, não só constranger, mas também dividir os visitantes.

Durante a reunião, o presidente Lula ignorou o assunto Bashir ¿ assim como todos os demais, à exceção de Chávez e do próprio Bashir ¿, preferindo defender uma nova regulamentação do sistema financeiro mundial.

Mencionou também a situação dos palestinos, apoiando um plano de troca de ¿terra por paz¿ com Israel.

¿ Não podemos ficar insensíveis ao sofrimento do povo palestino. Não é possível que depois de tantos anos de negociações, frequentemente interrompidas por ações militares, não tenhamos ainda um Estado palestino coeso e economicamente viável ¿ disse Lula, que insinuou que o Hamas deve fazer parte das negociações. ¿ Não haverá solução para os graves problemas no Oriente Médio sem a participação de todos os atores relevantes.

A declaração final da reunião não menciona qualquer apoio a Bashir, afirmando apenas que os países pedem a solução do conflito em Darfur e a importância do papel das forças da ONU e da União Africana no Sudão.

Bachelet, que encerrou a reunião falando como ocupante da presidência da Unasul (União dos Países SulAmericanos), não quis responder diretamente a perguntas sobre a ausência de um apoio a Bashir na declaração. A chilena lembrou que ela e seu pai foram perseguidos e que muita gente desapareceu durante a ditadura chilena. O presidente brasileiro também foi perseguido pela ditadura militar do Brasil.

Depois, para os jornalistas brasileiros, ela deu sua opinião pessoal.

¿ O Chile foi um dos países que impulsionou o TPI. Pela nossa própria experiência, há momentos em que a soberania dos países não basta. Há valores universais, os direitos humanos.

Após o encerramento da reunião, Chávez atacou Bachelet.

¿ Creio que não faz bem para a unidade sul-americana a presidente chilena convocar uma reunião com o vicepresidente dos EUA e o premier britânico, representantes dos impérios ¿ disse Chávez, mencionando Lula, que também participou deste encontro, com líderes progressistas mundiais. ¿ Há progressistas ali que não entendo.

Vou perguntar a Lula: ¿como são progressistas?¿ O governo chileno respondeu que ¿as palavras do presidente Chávez são completamente inadequadas¿.