Título: CNJ: presos vivem como animais no Espírito Santo
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 30/05/2009, O País, p. 3

Superlotação, violação de direitos e insalubridade são rotina em presídios

Mandados para uma inspeção nos presídios do Espírito Santo há dez dias, juízes auxiliares do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) exigem botas de borracha, luvas, máscaras e outros equipamentos de proteção para continuar o trabalho. Na Casa de Custódia de Viana, na Grande Vitória, 1.254 presos vivem como animais de zoológico. Os pavilhões insalubres não têm divisões internas, não há triagem por grau de delito nem a polícia ousa entrar em suas dependências, onde a única regra é a do mais forte. Na Unidade de Instrução Socioeducativa de Cariacica, 121 jovens foram transferidos na véspera de uma inspeção, supostamente para evitar o flagrante de superlotação. Há suspeitas de que parte do grupo, com dependência química, tenha recebido sedativos para não criar problemas no translado.

O CNJ já havia visitado presídios em Rondônia, Tocantins, Pará, Amazonas, Maranhão, Piauí, Alagoas e Rio de Janeiro. Seus representantes se acostumaram ao mau cheiro e ao amontoado humano. Mas, nos dez presídios capixabas, a situação passou dos limites. Um dos assessores dos juízes vomitou na vistoria de uma cela para adolescentes. Relatório sobre o estado das unidades foi entregue ao ministro Gilmar Mendes, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal. Os juízes Paulo Tamburini e Erivaldo Ribeiro querem que o governo do Espírito Santo reconheça a crise no sistema penitenciário e assine termo de compromisso para enfrentar o problema.

O relatório sustenta que, de modo geral, "são péssimas" as condições de encarceramento na Grande Vitória. Seus autores tiveram dificuldade para apontar o que havia de pior. "Dos dez estabelecimentos inspecionados, em todos há problemas de superlotação, insalubridade, excesso de prazo, carência assistencial e falta de disciplina", diz o documento. Se tivessem entrado, os juízes elegeriam a Custódia de Viana como a mais grave, mas um contingente da tropa de choque da PM capixaba que os acompanhava duvidou de sua própria capacidade de erguer uma barreira de contenção para que a vistoria pudesse chegar às dependências internas do presídio.

Em Viana, todos juntos: não há celas

Pelo que pode ser visto em Viana, isolada da Grande Vitória por uma estrada lamacenta, os juízes anotaram que a casa de custódia sofre de "grave problema de disciplina". Os presos destruíram todas as celas e estão separados unicamente por três pavilhões. A quantidade de pessoas espremidas em espaço tão reduzido, com graus de periculosidade tão díspares (reincidentes com primários) no mesmo espaço, "é um fator que promove sérias violações, como abusos sexuais e lesões corporais". O documento cita a morte de José Carlos Antônio dos Santos no local, há dez dias. Preso em março de 2007, por furto simples e com condicional concedida no ano seguinte, ele foi espancado até a morte.

Como o acesso é perigoso, a comida é depositada na entrada dos pavilhões, cabendo aos presos a distribuição. Eles ficam soltos, sem horário fixo para banho de sol ou qualquer regra. O CNJ apurou que há dois meses não há vistoria no local, fazendo crer que é livre a circulação de drogas, armas e celulares. Um dos integrantes da equipe comentou que "eles vivem como animais". Há grande quantidade de lixo acumulado, insetos e umidade, com vários presos doentes.

Além do excesso de presos, os juízes também deram pela ausência deles. No dia 12, véspera de uma inspeção do Conselho Nacional da Criança de do Adolescente na Unidade Socioeducativa de Cariacica, 121 jovens foram levados às pressas, em quatro ônibus, para o recém-construído Centro de Detenção Provisória de São Domingos, em São Gabriel da Palha, Norte do estado. O objetivo, apuraram, foi maquiar as condições da unidade da Grande Vitória, onde até esta semana havia adolescentes reclusos em contêineres sem ventilação nem esgoto.

Juízes já pediram intervenção

Em São Domingos, onde foram encontrar os adolescentes transferidos, os juízes apreenderam sprays de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo e outras armas não letais. Relatórios internos revelam que as armas eram usadas com frequência contra os meninos, levados a uma unidade de segurança máxima de adultos. Houve dias em que foram aplicados dois tubos inteiros de gás pimenta.

Parte deste grupo, pelo risco de crise de abstinência provocado pelo uso regular de drogas, teria recebido sedativos na transferência. "É deplorável a situação a que essas crianças são submetidas", diz o relatório. Os meninos relataram que, na pressa, foram proibidos de comunicar as famílias sobre a transferência. Os abusos cometidos na remoção e nos dias posteriores, solicita o relatório, serão investigados.

A operação no Espírito Santo foi motivada por denúncia do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias, entregue ao Ministério Público Federal junto com pedido de intervenção no Espírito Santo. Na lista de providências do relatório do CNJ, os juízes pediram a Gilmar Mendes que o documento também seja levado ao MP, o que reforçará os argumentos alegados no pedido de intervenção.

Até agora, foram vistoriadas as delegacias e presídios de Vila Velha, Jardim América e Argolas, o presídio e a casa de detenção de Novo Horizonte, a unidade feminina de Cariacica, além de Viana, da unidade socioeducativa para jovens, todos na Grande Vitória, e do centro provisório de São Domingos. O Espírito Santo mantém 9.800 presos, apenas 40% deles já condenados. Com o mutirão carcerário iniciado sexta-feira, por iniciativa do CNJ, as autoridades esperam reduzir a população carcerária, libertando presos que há muito já deveriam ter saído.

As vistorias do CNJ vão continuar, mas juízes e técnicos querem algum tipo de proteção para o ambiente insalubre, infestado de roedores, resíduos orgânicos, lixo e cheiro insuportável. Mais grave ainda é a busca de saídas. Embora exija solução imediata, definida por termo de ajustamento de conduta (TAC), o CNJ reconhece que é difícil encontrar destino adequado para presos acostumados com a indisciplina extrema e total permissividade. "Se eles forem para outro lugar, mais organizado, vão destruir tudo em poucas horas", disse um dos representantes do Conselho.