Título: Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsar diplomatas
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 28/06/2009, O País, p. 10

Homofobia e intolerância motivaram perseguições; Vinicius de Moraes foi um dos 13 afastados

Bernardo Mello Franco

BRASÍLIA. No período mais sombrio da ditadura militar, o Ministério das Relações Exteriores usou a segurança nacional como pretexto para violar a intimidade de funcionários e expulsar diplomatas que, segundo o próprio órgão, eram considerados homossexuais, emocionalmente instáveis ou alcoólatras.

Documentos obtidos pelo GLOBO no Arquivo Nacional, vinculado à Casa Civil, e no Itamaraty provam que a homofobia e a intolerância pautaram o funcionamento da Comissão de Investigação Sumária, que fez uma caça às bruxas em todos os escalões do Itamaraty. O órgão secreto deu origem a 44 cassações em abril de 1969, no maior expurgo da história da diplomacia brasileira.

A comissão foi criada pelo ministro Magalhães Pinto e chefiada pelo embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto, que teve 26 dias para confeccionar a lista de colegas a serem degolados com base no Ato Institucional no5. Em vez de perseguir esquerdistas, como fizeram outros ministérios na época, o Itamaraty mirou nos funcionários cujo comportamento na vida privada afrontaria os ¿valores do regime¿.

Entre os aposentados à força, sem direito a defesa, estava o poeta e então primeiro-secretário Vinicius de Moraes.

Mantido em segredo há 40 anos, o relatório da comissão confirma que o ódio contra homossexuais foi o fator que mais pesou na escolha dos cassados. Dos 15 pedidos de demissão de diplomatas, sete foram justificados com as seguintes palavras: ¿Pela prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa¿.

A lista segue com ¿incontinência pública escandalosa, decorrente do vício de embriaguez¿ (três casos), ¿insanidade mental¿ (mais três), ¿vida irregular e escandalosa, instabilidade emocional comprovada e indisciplina funcional¿ (um caso) e ¿desinteresse pelo serviço público resultante de frequentes crises psíquicas (um)¿.

Outros dez diplomatas ¿suspeitos de homossexualismo¿ deveriam ser submetidos a ¿cuidadoso exame médico e psiquiátrico¿ por uma junta de doutores do Itamaraty e da Aeronáutica.

¿Se ficar comprovada a suspeita que paira sobre esses funcionários, a comissão recomenda que sejam também definitivamente afastados do serviço exterior brasileiro¿, diz o relatório. Ao lado dos nomes, Magalhães Pinto anotou: ¿Chamar a serviço e submeter ao exame médico¿.

Não há registros de realização das consultas.

A comissão ainda receitou penas como repreensão e remoção do cargo a cinco diplomatas por motivos como ¿demonstrações de irresponsabilidade¿ e ¿desmedida incontinência verbal¿. Também pediu a demissão de oito oficiais de chancelaria e 25 servidores administrativos, além de exame médico para verificar a orientação sexual de outros quatro.

Só dois casos de motivação política

A lista de afastamentos sumários inclui funcionários humildes, como oito serventes, cinco porteiros e auxiliares de portaria, dois motoristas e um mensageiro.

Junto aos nomes, aparecem acusações vagas, como ¿embriaguez¿ e ¿indisciplina¿.

De todos os pedidos de cassação, só os de dois oficiais de chancelaria indicam alguma motivação política. Trazem a explicação ¿risco de segurança¿. Outros documentos secretos mostram que eles eram acusados de simpatizar com o comunismo.

Entre os diplomatas cassados estava Arnaldo Vieira de Mello, que era cônsul em Stuttgart e acabara de ser promovido a ministro de segunda classe, penúltimo degrau na hierarquia da carreira. O episódio, anos depois, levou seu filho, Sergio Vieira de Mello, a buscar outra carreira.

O diplomata brasileiro mais conhecido das últimas décadas se recusou a prestar concurso para o Instituto Rio Branco e foi trabalhar na ONU. Sergio ¿ morto em 2003 num ataque terrorista em Bagdá ¿ dizia não ver sentido em servir à casa que expulsou seu pai.

Os 13 diplomatas cassados na ocasião foram Angelo Regattieri Ferrari, Arnaldo Vieira de Mello, Jenny de Rezende Rubim, João Batista Telles Soares de Pina, José Augusto Ribeiro, José Leal Ferreira Junior, Marcos Magalhães Dantas Romero, Nísio Batista Martins, Raul José de Sá Barbosa, Ricardo Joppert, Sérgio Maurício Corrêa do Lago, Vinicius de Morais e Wilson Sidney Lobato.

Para compor a lista, a comissão recrutou informantes civis e militares. Sua primeira medida foi despachar circular telegráfica aos chefes de missão no exterior, intimados a entregar os nomes de servidores ¿implicados em fatos ou ocorrências que tenham comprometido sua conduta funcional¿. Arapongas das Forças Armadas cederam fichas individuais de mais de 80 diplomatas.

Também assinam o relatório os embaixadores Carlos Sette Gomes Pereira e Manoel Emílio Pereira Guilhon, que auxiliaram Câmara Canto na missão sigilosa.

O chefe da comissão encerrou o texto com um autoelogio patriótico: ¿Tudo fizemos para atingir os objetivos colimados e preservar o bom nome do Brasil e do seu serviço exterior¿. O chanceler Magalhães Pinto devolveu o documento assinado e com uma ordem escrita à mão: ¿Recomendo que se cumpram as determinações¿.

Cinco integrantes da lista seriam poupados até a publicação das aposentadorias, por ato do presidente Costa e Silva. Perderam o cargo 13 diplomatas, oito oficiais de chancelaria e 23 servidores administrativos. Os decretos de cassação ocupam três páginas do Diário Oficial de 30 de abril de 1969.