Título: A impunidade perde força
Autor: Amaral, Delcídio
Fonte: O Globo, 08/09/2007, Opinião, p. 7

O STF consagrou a luta das instituições brasileiras contra a corrupção e a impunidade.

Com a admissão da denúncia contra os envolvidos no escândalo do "mensalão", o Supremo Tribunal Federal fecha um ciclo importante, ainda que intermediário, do processo de reação contra a corrupção iniciado na CPMI dos Correios.

É arriscado apostar no objetivo último que teria em mente o ex-deputado Roberto Jefferson quando concedeu aquela entrevista, hoje histórica, à repórter Renata LoPrete, da "Folha de S.Paulo". Fato é que ali se inaugurava muito mais que um novo escândalo, a ser eventualmente apurado, tratado e esquecido, no âmbito de uma lista que só tem feito crescer, no curso de nossa história republicana. Intencionalmente ou não, o ex-deputado colocou em marcha um movimento que, coroado pela decisão do Supremo, prenuncia um novo marco no esforço nacional para dar fim à corrupção e à impunidade.

O Brasil está mudando. As instituições brasileiras estão mudando. Cabe a nós, governantes e governados, entender e apoiar esse processo.

Muitos apostaram na impunidade e, agora, concluído o julgamento, começam a perceber o quanto perderam. Muitos deram como certo que o Congresso Nacional não teria vontade e disposição suficientes para perseguir o fio dos fatos, independentemente do grau de importância de quem surgiria na outra ponta da linha. Imaginaram que a CPMI dos Correios, com presidente e relator pertencentes à base de apoio do governo, trabalharia apenas para contornar as denúncias e salvar as aparências.

Creio, entretanto, que o brasileiro pode constatar que o script, desta vez, foi muito diferente. A CPMI foi capaz de constituir, ao seu encerramento, um dos mais profundos trabalhos de investigação jamais enfrentados pelo Legislativo brasileiro. Um verdadeiro edifício de provas e evidências - todo ele projetado e construído com total isenção -, sem ceder em qualquer momento à tentação de rebaixar-se ao nível da intriga, do golpe de cena, do jogo político mesquinho.

E prova disso é o sucesso que obteve ao abastecer, com material consistente e farto, outras comissões de inquérito, a exemplo da do mensalão; ao encaminhar ao Ministério Público grande parte do material que fundamentou a denúncia feita pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza; ao sustentar, na forma de seu relatório final e de sua vasta documentação acessória, parcela significativa da segurança demonstrada pelos ministros do Supremo quando do acolhimento da maioria das posições sustentadas pelo Ministério Público. Afinal, ao Judiciário foi dado refletir, avaliar e decidir com absoluta isenção, justamente porque partiu de bases estritamente técnicas.

Os números anotados no esforço de inquérito parlamentar, de fato, impressionam. A tarefa investigatória foi monumental: 165 reuniões, entre o plenário da comissão e suas subcomissões; 1.602 requerimentos votados, 1.203 dos quais aprovados, apenas para citar uns poucos dados operacionais.

Os resultados, propriamente ditos, são ainda mais relevantes.

Em função da CPMI, foram abertas nos Correios 24 sindicâncias, que redundaram em três servidores demitidos por justa causa, na revisão administrativa de diversas áreas, na adoção de novos procedimentos para a política de patrocínios e na realização de nova licitação para contratação de publicidade. No Banco do Brasil, foi extinto o Fundo Visanet - provável fonte de graves indícios de irregularidades -, rescindido o contrato da DNA e revisto o processo de licitação de publicidade, a partir do qual contratou-se outro fornecedor, tendo sido feita, ainda, completa reestruturação da Diretoria de Marketing.

Ao fechamento dos trabalhos da comissão, quarenta procedimentos fiscais, contra pessoas e empresas, haviam sido abertos pela Receita Federal. Mais de setenta autoridades foram afastadas ou processadas, ainda em instância administrativa, dentre as quais presidentes e diretores de empresas estatais, deputados federais, secretários de Estado e outros ocupantes de cargos na administração federal, inclusive dois ministros de Estado.

Todo esse trabalho, somado à competente peça produzida pelo Ministério Público, propiciou ao STF condições excepcionais para uma sentença corajosa, abrangente e alvissareira, porque apta a demonstrar que, sem dúvida, o ciclo da impunidade está morrendo, no Brasil. A decisão não é ainda pela condenação, mas inicia procedimento judicial que poderá levar a ela, independentemente do cargo, do prestígio ou do poder acumulado pelo indiciado. Independentemente do poder, da influência e do alcance de sua ação, no mundo público ou no mundo privado.

Reverência à lei e ao processo; isenção e técnica; coragem e decisão. Foi com essas armas que até aqui chegaram o Congresso, por meio da CPMI dos Correios, o MPF e a Corte Constitucional. O caminho foi duro, mas foi também trilhado com o sentimento de grave dimensão histórica, dos paradigmas que iam sendo rompidos, dos rumos inovadores que poderiam se abrir, daquele dia em diante, no sentido de institucionalizar uma nova abordagem contra o flagelo da corrupção.

Muito ainda resta por fazer, é bem verdade. Mas a decisão do STF certamente implicará, entre outros efeitos positivos e desejáveis, o fortalecimento das propostas feitas pela CPMI e, em especial, do legado que deixou para exame na área legislativa.

Contudo, o maior ganho de todo o processo, neste final ainda provisório, terá sido dar ao Brasil a oportunidade de inovar seus métodos de luta contra os desvios de conduta, de restabelecer a iniciativa da parte das instituições públicas, de fazer crer que é possível contra-atacar os que minam as condicionantes de futuro do nosso povo.

O Brasil provou que a impunidade perde força, entre nós, de maneira acelerada. O Brasil, sem dúvida, tem futuro. Quem não tem futuro, no Brasil, é a corrupção e a impunidade. É a ação imperdoável de determinados setores que, mesmo isolados, insistem em não reconhecer que os tempos mudaram.

DELCÍDIO AMARAL é senador (PT-MS).