Título: Profissão: prisioneiro
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 15/09/2007, Opinião, p. 7

Houve um tempo em que se dizia: brasileiro, profissão esperança. Hoje, mais correto seria dizer: brasileiro, profissão prisioneiro.

Prisioneiro no trânsito, em carros que são celas ambulantes em marcha lenta, desperdiçando precioso tempo de vida de seus passageiros. Alguns em carros blindados, os vidros escuros fechados, impedidos de ver a cidade em sua realidade, obrigados a correr o risco de cruzar esquinas com sinais vermelhos, para evitar assalto, morte, seqüestro.

Prisioneiro do analfabetismo, que faz estrangeiros, brasileiros em suas próprias cidades, impedidos de decodificar os sinais que dão liberdade de locomoção, escolha, entendimento. São livres em um mundo estranho, prisioneiros do desconhecimento, exilados no tempo pisando o século XXI e vivendo no século XIX. Ao seu lado, prisioneiros também milhões de brasileiros, principalmente jovens, que aprenderam a ler, mas não conseguem um emprego, por falta de educação de qualidade. São muitos os prisioneiros dessa educação insuficiente; também são prisioneiros: os educados obrigados a interagir com brasileiros prisioneiros da deseducação; o engenheiro sem operários que entendam suas ordens nem saibam operar as máquinas que devem utilizar; o gestor sem auxiliares que executem bem suas ordens por falta de capacitação profissional.

Prisioneiros das filas: nas paradas de ônibus, nos postos em busca de uma vaga de emprego, nos corredores à espera de atendimento médico, condenados à morte, sentenciados pela falta de médico, de leito, de equipamento, de medicamento. Prisioneiros da insensibilidade e da incompetência dos dirigentes nacionais, que não canalizam os recursos necessários, ou os desperdiçam no meio desse apagão gerencial que caracteriza a administração pública brasileira. Prisioneiros de políticos que mais parecem hipnotizadores: capazes de roubar quando parecem dar; de mentir aparentando sinceridade.

Prisioneiros infantis, com infâncias roubadas nas ruas, no lugar da escola; no crime, no lugar de família; na prostituição no lugar dos gestos simples das amizades pueris ou adolescentes. Crianças prisioneiras desde o dia em que nascem, que passarão, desde a primeira infância até a morte, sem tocar o frio chão da realidade nacional. Protegidas em bolhas sociais, do quarto à garagem, dali à escola, ou ao clube ou dentista, e de volta à garagem e ao quarto.

Adultos prisioneiros em condomínios fechados como naves espaciais, distantes da realidade urbana, deslocando-se da casa para o carro fechado, dali ao estacionamento subterrâneo, escritório ou shopping center, aeroporto ou outras cidades nas quais a bolha social continua levando-os prisioneiros, protegidos assustados com o risco da contaminação social. Apesar do luxo, do conforto, do ouro, da renda, isolados como prisioneiros, assistindo à realidade à distância, pela televisão. Confundindo os fatos de seu país com os acontecimentos de qualquer outra parte do mundo. Prisioneiros de uma globalização que transforma o mundo em um simulacro, apenas aparência. Tão prisioneiros quanto os 580 mil encarcerados nas superlotadas cadeias nacionais.

Parlamentares prisioneiros no Congresso Nacional, porque optaram por construir uma bolha política, isolados da vontade popular, distantes da opinião pública. Pensam no povo apenas a cada quatro anos, no instante do calendário eleitoral. Prisioneiros da sua própria concepção de que há mais poder em salvar um colega sob fortes evidências de quebra de decoro parlamentar do que se submeter à vontade popular.

O brasileiro, profissão prisioneiro, é como um hipnotizado que acredita ser livre. Enganado como o pobre que se sente rico quando fecha os vidros do seu carro preso no engarrafamento, prisioneiro, cansado, mas feliz, porque ao seu redor os outros pobres prisioneiros pensarão que seu carro tem ar-condicionado.

Prisioneiro, eu. E você também, leitor!

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).