Título: Não pressentiram o escândalo que isso ia dar
Autor: Escóssia, Fernada da
Fonte: O Globo, 16/09/2007, O País, p. 12

Historiador diz que governo Lula perde com absolvição de Renan Calheiros e que crise no Senado continuará.

O governo Lula errou de cálculo ao trabalhar para salvar Renan Calheiros, pois ajudou a manter no segundo posto mais importante da República, a presidência do Senado, um homem indefensável. É a análise do cientista político e historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Para Alencastro, a crise no Senado se agrava, e o governo perde. O historiador, de 61 anos, critica o voto secreto na sessão que salvou Renan. Mas diz que o Senado, fundamental para o federalismo brasileiro, não pode ser extinto e é mais democrático que no passado: "As trapaças perpetradas ali caem na imprensa, na boca do povo".

Legenda da foto: ALENCASTRO: "Perde o governo, que mostrou que está disposto a continuar pendurado num político desmoralizado"

Fernanda da Escóssia

Quem ganha e quem perde com a absolvição de Renan Calheiros?

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO: Perde a cidadania, perde o governo, que, para além dos cálculos imediatos, mostrou que está disposto a continuar pendurado num político desmoralizado, num presidente do Senado que perdeu as qualificações para exercer o posto de segundo personagem mais importante da República. Todo mundo perde, até o próprio Renan, porque a situação dele não está nada clara, ele pode ter outros processos pela frente. O rastro de coisas irregulares levantadas até agora vai continuar em pauta.

Como ficam Lula e o Planalto, que articularam para salvar Renan?

ALENCASTRO: Perdem também. O Renan está furando o acordo que foi feito, isso vai ser posto em cima da mesa de novo. O Planalto também não tem interesse em ter um presidente do Senado que está levando paulada de todo lado e não pode se defender, porque é indefensável. Ele só se agüentou no voto secreto. Visivelmente eles não pressentiram o escândalo que isso ia dar, e que, ao contrário, a crise pode se agravar.

Como analisa o papel desempenhado pelo Senado?

ALENCASTRO: Vários senadores mentiram quando declararam seu voto em favor da cassação. Está claro que o senador Renan não está ao abrigo de novas denúncias. A maioria dos senadores que votou pela absolvição parece não ter se dado conta de que a crise envolvendo o Senado vai piorar.

O que acha da proposta de extinção do Senado, defendida pelo presidente do PT, Ricardo Berzoini?

ALENCASTRO: Trata-se de proposta irrefletida e irresponsável, na medida que foi formulada pelo presidente de um grande partido, do partido do governo. O Senado está ancorado na história nacional. Foi nele que as províncias e depois os estados acertaram os ponteiros com o governo central. Muita gente perdeu a vida nesse embate. Foi assim que se constituíram o federalismo e a unidade do país. É assim que ela se amarra até hoje.

Diante da importância histórica do Senado no Brasil, como analisa a Casa hoje?

ALENCASTRO: No Senado do Império foram feitos discursos em que alguns pais da pátria defendiam o tráfico negreiro, a escravidão. Na República continuou o conchavo das oligarquias regionais, e na ditadura chegou-se ao desplante de dar o nome de Filinto Müller - notório chefe dos torturadores do Estado Novo - a um auditório do Senado. As atas das sessões desde 1826 estão no site do Senado para quem quiser ler. Hoje o Senado é muito mais democrático. As trapaças perpetradas ali caem logo na internet, na imprensa, na boca do povo.

"PT está desarticulado"

O senhor vê desequilíbrio institucional, com fortalecimento do Executivo e perda de poder do Legislativo?

ALENCASTRO: Não acredito que o Executivo possa sobrepor-se ao Legislativo. Isso só aconteceu no Brasil nos períodos ditatoriais. O Legislativo continuará a ter o peso importante que sempre teve. Não porque o país tenha raízes democráticas, mas porque o país sempre foi muito diferenciado e porque as oligarquias regionais não deixam o governo central ficar por cima da carne seca. Para o bem e para o mal, é isso que fundamenta a nossa longa tradição parlamentar.

Como eleitor de Lula e simpatizante do PT, o que achou da ação dos senadores petistas para salvar Renan?

ALENCASTRO: Foi um grave erro político. Mais uma vez, fica demonstrado que a bancada do PT está desarticulada e que a cúpula do partido está desconectada da opinião pública.

O que acredita que acontecerá agora? Renan diz que não se licenciará da presidência do Senado.

ALENCASTRO: Renan está furando o acordão e acha-se agora o mais qualificado para presidir a Casa. O PT e o governo têm agora a responsabilidade de armar o plano B e apoiar os outros dois processos contra Renan que ainda estão em juízo.

O site do Senado ficou sete horas fora do ar, tal a quantidade de mensagens de protesto. O que dizer ao eleitor?

ALENCASTRO: O eleitor deve descascar o pau nos representantes de seu Estado nas próximas eleições. A mobilização deve ir além dos e-mails, ferramenta fácil de ser neutralizada. As eleições senatoriais podem ter grande impacto. A ditadura começou a se desestabilizar em novembro de 1974, quando os eleitores elegeram 16 senadores da oposição, do MDB, contra seis da Arena. O eleitorado brasileiro sabe utilizar o voto majoritário da eleição senatorial para mudar o jogo. Deve fazê-lo de novo nas próximas eleições. Mas esse assunto do Senado precisa de mobilização política maior. O voto para o Senado é majoritário, em que se vota no senador. Ele disputa voto com outro candidato, e só um é eleito, ou dois. Não tem as implicações do voto proporcional, onde um sujeito é eleito e leva na garupa outros.

O senhor é a favor de sessões e votações secretas?

ALENCASTRO: Pode haver sessões do Senado para discutir acordos internacionais em que é preciso haver voto secreto. O Senado é responsável pela diplomacia política externa. Há momentos em que não pode haver discussão pública em lugar nenhum do mundo. Mas, nesse caso (de cassação), o voto secreto é absurdo e não precisa ser mantido.