Título: Aloizio Mercadante
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Globo, 23/09/2007, Opinião, p. 7

O cineasta Andrezj Wajda tem filme, intitulado "Danton", cuja lembrança é oportuna neste momento. Nele, há dois grandes personagens: Danton e Robespierre, os quais simbolizam formas antagônicas de praticar política e concretizar princípios éticos. Danton, líder dos girondinos, é transparente, corajoso e conciliador. Insurge-se contra o banho de sangue realizado em nome de princípios supostamente éticos da Revolução Francesa. Robespierre, líder jacobino, é, ao contrário, personagem opaco, intransigente e pusilânime. Vê a Revolução como processo de purificação, no qual não há lugar para a defesa do indivíduo e dos seus direitos, somente para a punição implacável e imediata, nos covardes julgamentos políticos. Robespierre manda executar Danton. Mata-se o humano na política e a racionalidade na ética.

O jacobinismo, personificado por Robespierre, representa a barbárie da intransigência, que conduz ao autoritarismo e à ausência do debate democrático. Pois bem, o jacobinismo tardio que se apoderou do cenário político nacional, neste país que clama, com razão, pelo fim da impunidade, vem impedindo que minha consistente posição sobre o julgamento do senador Calheiros seja compreendida. Com efeito, o maniqueísmo jacobino é, por definição, simplista. Assim, qualquer coisa que escape à sua estreiteza dogmática torna-se incompreensível. Porém, como tenho a fé que Danton tinha na racionalidade humana, vou explicar novamente a minha posição.

Acho um grave erro que o Senado julgue o decoro de um mandato com base em quatro processos distintos. Isso é procedimento irracional que confunde o eleitor, alonga desnecessariamente o julgamento, desgasta a instituição e impede o pronunciamento coerente e bem embasado sobre o tema. Na realidade, o Senado montou uma armadilha contra si mesmo, pois, como os processos são desconexos, eles ensejam votações díspares. Pode-se votar pela cassação em um e pela absolvição em outro. Como a população poderá entender essa contradição? Como ter coerência de posicionamento ao longo desse processo pulverizado que induz à inconsistência?

Preocupado com essa situação, na sessão do dia 12 tentei propor o adiamento da discussão e a articulação dos processos para que pudéssemos, numa única e aberta sessão de votação, com as investigações concluídas e todos os elementos à disposição, julgar o senador Calheiros de forma definitiva e firme. Infelizmente isso não foi possível, dado o tenso clima da sessão. Vi-me, assim, num dilema. Votar pela cassação significava condenar um parlamentar à perda de seus direitos políticos com base nessa primeira e precária fase do processo, que suscitava mais dúvidas do que certezas, já que não havia prova conclusiva da acusação, qual seja: que a empreiteira teria pago despesas pessoais do senador. Por outro lado, a absolvição implicava arquivamento das denúncias cuja investigação queria aprofundar, consciente de que teríamos mais três processos para serem analisados. Resolvi, assim, sustar a minha manifestação, coerentemente com a proposta de julgar o mandato com todas as investigações concluídas e dar meu voto de mérito num único e definitivo escrutínio. Enfatizo, ademais, que há muito insistia para que o senador Calheiros se afastasse da presidência, de forma a preservar a instituição e assegurar a normalidade dos processos.

O meu voto pela abstenção nessa fase preliminar do processo foi, portanto, um voto dado com transparência e convicção, ao contrário dos votos envergonhados daqueles que declaram uma coisa aos jornais, mas fazem o oposto no Senado. Foi voto de consciência, dado num contexto no qual os políticos têm de ter postura de magistrados, e de modo algum voto covarde, pois tinha conhecimento pleno de que ele me traria grande desgaste político e pessoal, e tampouco voto omisso, já que sabia que a evolução das investigações possibilitaria, até o final do processo, manifestação definitiva.

Quero criar as condições para que o Senado julgue seu presidente como a população quer e como a democracia exige: de forma aberta e decidida, com amplo direito à defesa e provas além da dúvida razoável. Quem conhece minha história sabe que nunca me omiti e sempre me bati pela ética na vida pública. Porém, no necessário combate à impunidade não podem prevalecer os linchamentos e os julgamentos políticos, típicos da intransigência irracional de Robespierre, mas sim a racionalidade e o respeito aos direitos e garantias individuais, presentes na coragem cívica de Danton.

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).