Título: Na escola, mas analfabetos
Autor: Menezes, Maiá; Martin, Isabela
Fonte: O Globo, 23/12/2007, O País, p. 3

Estudo mostra que 12% dos alunos de 1ª a 4ª série não sabem ler nem escrever.

Oresultado de um simples ditado, feito por uma professora do 4º ano do ensino fundamental (antiga 3ª série) numa escola municipal na Zona Oeste do Rio, revela o tamanho do fosso entre o que ensinam as lições no quadro-negro e o que aprende um aluno. Nesse caso, de 13 anos. Diante do som das palavras, relacionadas ao Natal, ele improvisou um alfabeto próprio, em nada semelhante às letras convencionais.

É um exemplo dramático de uma realidade: o acesso à escola não é passaporte para o aprendizado na rede pública de ensino no Brasil. O analfabetismo ainda é a sombra que nubla o futuro de 12% dos estudantes de 1ª a 4ª série (2º a 5º anos do novo ciclo fundamental). Incorporados ao sistema educacional, eles engrossam a estatística que indica a quase universalização do ensino - os dados apontam que 3% das crianças estão fora das salas de aula -, mas estacionam nos primeiros anos de escola. Ou são aprovados sem conseguir ler ou escrever.

Os dados são do Instituto Ayrton Senna, que atua, com um dos seus programas de alfabetização, em 527 municípios. O analfabetismo é mais agudo entre os alunos que estão fora da série prevista para a sua idade.

- Quando as escolas públicas abriram as portas para a quantidade, abriram a rede para todos os níveis de crianças. E a escola não se preparou. A quantidade entrou pela porta da frente e a qualidade saiu pela porta de trás. E o analfabetismo no ensino fundamental é um dos principais sintomas da má qualidade do ensino - diz Margareth Goldemberg, coordenadora-executiva do Instituto Ayrton Senna.

Despreparo para a universalização

A presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho, sustenta que é preciso investimento na formação inicial do professor para mudar o quadro, que considera grave:

- Esse é um problema muito preocupante para a rede pública. Um dos pontos centrais é a formação inicial dos professores. Quando a escola é para todos e todos estão na escola é preciso que esse professor esteja preparado. E eles não estavam. Foi uma combinação explosiva. O desafio da universalização foi quantitativo. Nós quase universalizamos, mas perdemos na qualidade.

É o que atesta a professora Mônica Pereira de Assunção, de 31 anos, há nove dando aulas para alunos do 1º ao 5º ano do fundamental na Escola municipal Paulo Freire, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Sem o instrumental básico para aprender, os alunos não conseguem evoluir na escola.

- Não há como alunos que não sabem escrever ou ler frases simples aprender outras disciplinas. Os professores precisam estar preparados para essa realidade - diz Mônica.

Ilana Cardoso de Gouvêa é professora de futuros professores. E conhece bem de perto a dimensão do drama. Ela dá aulas para duas turmas do Instituto Estadual de Educação Clélia Nancy, em São Gonçalo. Lá, para ela, está o retrato de um efeito cascata: as próprias alunas, com cerca de 17 anos, têm dificuldades de aprendizagem.

- As escolas não exigem sequer que o aluno escreva, que produza um texto. Eles chegam ao ensino médio sem noção de como construir um raciocínio escrito. Às vezes eu pego alunas que mal sabem ler e escrever e têm horror à leitura. Ele acaba o ensino normal semi-analfabeto - diz Ilana, que também já deu aulas na alfabetização:

- É um sofrimento muito grande, e se relaciona a indisciplina do aluno a isso. Já peguei crianças de 13 e 14 anos que passavam de ano apenas copiando as palavras. Elas aprendem a desenhar a letra.

- Os alunos estão concluindo o ensino médio sem saber ler e mal sabem assinar o nome. Essa é uma realidade em quase todas as redes. As escolas deixaram de ser interessantes. Em muitos casos, viraram depósitos de alunos - avalia a professora Beatriz Lugo, da diretoria do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio.

A Escola de Ensino Infantil e Fundamental São João Batista, em Fortaleza, decidiu criar, no começo do ano, uma turma exclusiva para alfabetizar crianças da 3ª, 4ª e 5ª séries. A idéia surgiu depois que a direção ouviu o depoimento de Nayara, de 14 anos, que chorava por não saber ler.

- Eu me sentia inferior. Achava que nunca ia conseguir ler e escrever. Só coisa ruim passava pela minha cabeça - diz Nayara, que hoje voltou para a 4ª série e está alfabetizada.

O grupo é formado por estudantes entre 9 e 16 anos. Há relatos da professora Maria de Fátima Holanda de alunos que, com quase 15 anos, não sabiam em que mês se comemora o Natal. O mais velho, Junior, de 16 anos, irmão de Nayara, chegou à turma sem conhecer a letra "e". Maria de Fátima diz que na sua classe há atualmente quatro famílias. Para ela, a presença de irmãos na mesma série mostra que a violência e o abandono da família interferem no aprendizado.

Nos alunos da 2ª série (antiga 1ª série) da mesma escola, o problema também é identificado com clareza: a professora, na última quinta-feira, pediu a um de seus alunos que apontasse a palavra "macio" no quadro negro. Havia outras três opções. X., de 9 anos, apontou para "doce". Na segunda e na terceira chances, as respostas foram novamente erradas. O resultado do teste relâmpago não surpreende Gleide de Oliveira, de 32 anos. Com pequenas diferenças, esse é o nível predominante entre a maioria dos 17 alunos que freqüentam regularmente as suas aulas. Assim como X., 70,5% dos seus colegas de classe são analfabetos.

O caso de X. destaca-se. Ele está repetindo a 2ª série. Como não é o único nessa condição, não parece estar incomodado com a própria limitação e até orgulha-se de saber o alfabeto. Na sua turma, apenas seis crianças conseguem escrever o nome todo. É o caso de Y., de 8 anos, que não sabe ler.

Procurado, MEC se recusa a comentar

O nível de proficiência dessa turma reforça o resultado de um censo aplicado há quatro meses pelo Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), do governo do Ceará, que avaliou os alunos da 2ª série do ensino fundamental matriculados na rede pública estadual e municipal. Das 129.824 crianças, apenas 29,02% foram capazes de ler um texto e 12,57% de escrever um pequeno texto. A maioria só conseguia identificar letras (67,38%), outros liam também palavras (56,96%) e um grupo menor conseguiu ler frases (41,53%).

O governo do Ceará é dos poucos que já avalia a qualidade dos primeiros anos do ensino fundamental. No Rio, onde 468.907 alunos freqüentam o ensino fundamental na rede estadual, cerca de dez mil alunos enfrentam defasagem idade-série. A Secretaria estadual de Educação, no entanto, não tem dados sobre o analfabetismo na rede. É o mesmo caso do município: mesmo sem dados, a secretaria municipal estima que o problema não ocorra nas escolas geridas pela prefeitura - afirmação que provas de alunos já no final do primeiro ciclo do ensino fundamental contestam.

O Ministério da Educação, procurado pelo GLOBO durante três dias, na semana passada, informou que não poderia se manifestar. Ainda não há dados oficiais sobre o tamanho do déficit de aprendizado nos primeiros anos de ensino. A partir do ano que vem, o governo federal começa a avaliar o desempenho escolar também dos alunos de 6 a 8 anos, a exemplo do que é feito hoje com estudantes mais velhos. A intenção do MEC é identificar se, de fato, as crianças estão alfabetizadas aos 8 anos.

www.oglobo.com.br/pais