Título: Anistia polêmica
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 15/01/2008, O País, p. 4

As colunas do último fim de semana, quando discuti a idéia do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, de certos temas relativos à segurança pública passarem a ser da alçada da legislação estadual, provocaram grande polêmica, especialmente a proposta do sociólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, de uma pactuação com envolvidos na criminalidade no Rio de Janeiro, que poderia até mesmo chegar à concessão de uma espécie de anistia, em busca de uma pacificação. Luiz Eduardo Soares, que, além de secretário em Nova Iguaçu, é professor da Uerj e da ESPM, está no momento na Universidade Harvard, dos Estados Unidos, trabalhando com policiais colombianos e americanos em um projeto de atuação em áreas de conflito.

De que anistia ele está falando? O termo técnico mais apropriado seria "salvo conduto", idéia que ele começou a trabalhar no fim de 1999, quando era coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio. Pelo projeto, as pessoas não condenadas envolvidas com a criminalidade, e que desejassem mudar de vida, teriam uma oportunidade limitada para fazê-lo, se fossem observadas certas condições:

(1) Confessariam seus crimes (sem ter a obrigação de delatar ninguém), sabendo que suas confissões poderiam ser usadas para condená-las, no futuro, caso voltassem a se envolver com práticas ilegais; (2) entregariam ao programa propriedades e valores acumulados; (3) dispor-se-iam a abandonar seus envolvimentos criminosos e a cumprir rigorosamente as regras do programa.

Assumidos tais compromissos, essas pessoas seriam encaminhadas a um programa análogo ao de proteção de testemunhas, no qual receberiam nova identidade e, com suas famílias, seriam deslocadas para locais em que pudessem recomeçar a vida. Cada beneficiário do programa receberia moradia e acesso a educação e qualificação profissional, para que pudesse ingressar no mercado de trabalho, além de ajuda de custo por dois anos. Todos seriam supervisionados.

O dinheiro viria, segundo Luiz Eduardo Soares, "da mesma fonte que gastaria o mesmo para manter presas essas pessoas. O custo médio de um preso varia, no tempo e no espaço, mas gira em torno de R$1 mil por mês". Se a campanha for bem feita, envolvendo toda a sociedade, sonha ele, "não seria impossível que, em um único movimento, retirássemos do crime um contingente enorme de gente".

O sucesso inicial da idéia foi tão grande, lembra Soares, "que logo compreendi quão importante é dar às mães dos que se envolvem com o tráfico e o crime um discurso. Muita gente envolvida com o crime percebeu que esse caminho só leva à morte, ao sofrimento, ao desamparo. Mas não sabe o que fazer para mudar de vida. Não vê saídas. Nem do ponto de vista econômico, nem do ponto de vista prático".

Luiz Eduardo Soares joga perguntas para o debate: "Essa situação serve aos nossos interesses, como sociedade? Interessa à sociedade que essas pessoas, que poderiam fazer outra escolha, não tenham opção? Não valeria a pena considerar a hipótese de negociar seu futuro, esquecendo seu passado, sob a forma condicional que eu descrevi?"

Alfredo Sirkis, do Partido Verde do Rio, ficou "francamente preocupado" com a postura de Luiz Eduardo Soares, e viu nela um sintoma de que "está crescendo a pressão para que o governo do estado recue em sua política de confrontar o controle territorial narcovarejo, sua posse e ostentação de armamento de guerra e sua presença militar cada vez maior nos bairros ao redor de seus feudos e nas vias expressas, voltando-se àquela postura de acomodação, administração e "negociação" com o tráfico que prevaleceu em períodos das gestões Brizola e Garotinho-Rosinha". Para Sirkis, o "nó górdio" a ser cortado é o da qualidade das polícias, e dentre os fatores determinantes, o principal "é acabar com a "a polícia de bico", a escala de serviço de 24 por 72 de folga que converte a profissão policial numa atividade descontínua e secundaria".

Por outro lado, "pretender que não se deve mexer num código penal, numa lei de execuções penais e num estatuto do menor que fazem do Brasil um dos países onde é mais fácil para um assassino permanecer ou voltar às ruas é o conforto do avestruz bem pensante com sua cabeça enterrada fundo nas lides acadêmicas", alfineta Sirkis.

Por sua vez, o consultor Gil Cordeiro Dias Ferreira, que de 2001 a 2005 prestou consultoria especializada de planejamento estratégico para a Polícia Federal e, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, também para policiais civis, militares e rodoviários, bem como para bombeiros militares, das 27 unidades da Federação, dentro do Plano Nacional de Segurança Pública, discorda "frontalmente" da idéia de se "desconstitucionalizar" a atividade policial.

Segundo ele, "não se pode combater o crime sem unidade doutrinária e organizacional, particularmente porque, em que pesem suas diferenças, os criminosos de há muito se articulam em nível nacional". Se a organização, o adestramento e o emprego das polícias forem descentralizados para os estados, fatalmente a legislação penal e de segurança pública também deverá sê-lo, afirma Gil Ferreira: "E aí veremos repetir-se, nessa área, a anarquia. Provavelmente haveria estados "alegres" onde o "liberou geral" imperaria, e outros mais circunspectos, onde seriam implantados trabalhos forçados, bolas de ferro nos tornozelos e até enforcamento", ironiza.

Por fim, o delegado Tarcisio Andréas Jansen, do Rio de Janeiro, acha que o que deve ser feito "é a constitucionalização e a independência da polícia judiciária investigativa (conhecida por Polícia Civil). A nossa Constituição de 1988 tratou a Polícia Civil de modo absolutamente insuficiente, não dotando a função investigativa de garantias que hoje têm a magistratura, Defensoria Pública e Ministério Público.