Título: O Fla-Flu do direito autoral
Autor: Lewicki, Bruno; Queiroz, Daniel Campello
Fonte: O Globo, 15/01/2008, Opinião, p. 7

O advogado João Carlos Müller Chaves publicou no GLOBO, no final de dezembro, artigo em que acusou o Ministério da Cultura de "ameaçar" o direito autoral ao promover a discussão sobre possíveis mudanças em sua lei - o que teria sido comprovado durante o recente Seminário de Lançamento do Fórum Nacional de Direito Autoral. Müller tem o direito de discordar da necessidade desse Fórum ou das opiniões lá expostas. Sua crítica, porém, foi generalizante, e, por melhor que possa ter sido sua intenção, acabou por botar em dúvida a independência daqueles que participaram do evento.

Na visão de Müller, o evento não privilegiou a discussão, e sim a "doutrinação", uma vez que "todos os conferencistas disseram e repetiram que há um "excesso de proteção", que o direito autoral deve ser "flexibilizado", ou seja, enfraquecido", para usar suas palavras. Por essa imagem, o Seminário teria sido um local de pensamento único, na contramão das tendências mundiais. Quem, no entanto, acompanhou o evento, no próprio local ou pela internet, pode atestar que ele comportou as mais variadas opiniões. A "flexibilização" não foi seu tema único, tendo o assunto sido abordado na medida da sua relevância.

Nós dois participamos do Seminário, que teve ainda vários outros debatedores, de inquestionável reputação no meio e com visões próprias sobre a necessidade de serem efetuadas mudanças na lei de direitos autorais. Não temos procuração para defendê-los, mas podemos falar por nós: procuramos apontar aquilo que vemos como problemas da lei, no que se refere, por exemplo, à perda do controle econômico das obras por parte dos criadores e à necessidade de uma releitura das chamadas "limitações" aos direitos do autor. De todo modo, convém deixar claro: mesmo que o MinC quisesse impor uma ideologia, é evidente que nossas opiniões não são manipuláveis, já que servem ao propósito único de auxiliar o aperfeiçoamento do direito autoral.

Ainda assim acabamos, infelizmente, atingidos pelo amargo acirramento de ânimos registrado nos últimos meses, principalmente em torno do projeto Creative Commons. Os repetidos ataques a essas licenças têm criado uma cortina de fumaça que atrapalha o aprofundamento da discussão sobre a lei atual, e gera um clima que lembra a conhecida passagem bíblica: "Quem não é por nós, é contra nós." A quem interessa esse verdadeiro Fla-Flu? Não ao nosso direito autoral, certamente. É emblemático dessa falsa dicotomia considerar que aqueles que analisam eventuais mudanças na lei defendem, necessariamente, o "enfraquecimento" dos direitos dos autores - e nós não aceitaremos que nos tomem por propagandistas de um ataque ao direito autoral apenas porque estudamos tais propostas.

São corretas as menções de Müller quanto às medidas de Nicholas Sarkozy e ao Digital Millenium Copyright Act, uma das mais controversas leis recentes dos Estados Unidos, mas é preciso lembrar que nem todos os desenvolvimentos do direito autoral no mundo são assim tão homogêneos. O mundo inteiro assiste a um profícuo debate que leva a transformação do direito autoral em diversas direções. Em Israel, por exemplo, entrará em vigor ainda em 2008 uma nova lei que repete quase integralmente o fair use do direito norte-americano, instituto que traz parâmetros abertos para o uso legítimo de obras alheias. No caso brasileiro, o fato de a lei completar, este ano, sua primeira década, não serve de argumento para que os estudos sobre sua mudança sejam repelidos de forma tão refratária. É sabido que a data de promulgação de uma lei nem sempre é atestado de sua adequação à contemporaneidade, ainda mais em tema que se renova tão constantemente.

Estivemos no Seminário para apresentar nossas idéias sobre um direito autoral equilibrado, que possa atender aos interesses dos autores, dos demais titulares de direitos e também dos usuários. Aceitaremos com entusiasmo novos convites - venham eles do MinC ou de qualquer outra instituição - e acreditamos que todas as contribuições bem-intencionadas são válidas, sendo evidente que profissionais como Müller podem ser muito úteis nesse processo. Esclarecido, enfim, o mal-entendido, torcemos para que também seja dissipada a polêmica que fomenta o perigoso binarismo entre usuários e titulares de direito, ao mesmo tempo em que esperamos que aumente a efervescência quanto ao assunto. 2008 pode ser um ano-chave para o direito autoral brasileiro.

BRUNO LEWICKI e DANIEL CAMPELLO QUEIROZ são advogados.