Título: Em busca do voto hispânico
Autor: Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 29/01/2008, O Mundo, p. 29

Hillary Clinton e Barack Obama travam na Flórida uma batalha tão feroz quanto fantasmagórica. A prévia não vale nenhum delegado, pois o Comitê Nacional Democrata retaliou a antecipação irregular da primária eliminando a representação estadual. Mesmo assim, a Flórida é um prêmio valioso demais para ser ignorado.

Com 18,3 milhões de habitantes, a Flórida figura como o quarto estado mais populoso do país e desempenhou o papel de protagonista no drama da primeira eleição de George W. Bush. Mais de um terço da sua população é classificada entre as minorias. Os negros são 16,3% do total e pendem para o senador de Illinois. Hillary aposta suas fichas nos hispânicos, que são 18,5%.

Os EUA descrevem a si mesmos como a nação do melting-pot. O conceito nada tem a ver com a nossa mestiçagem. Aqui, o intercâmbio genético refletiu-se nos espelhos da política e da cultura como explosão da gaiola da raça. Lá, as linhas imaginárias de fronteira entre raças foram conservadas pela regra que diz que a existência de um ancestral negro faz do indivíduo um negro. Essa regra foi a base para as leis raciais que sobreviveram até a década de 60.

Segundo a narrativa do melting-pot, os EUA são constituídos por diversos grupos étnicos, gerados por sucessivas correntes imigratórias, que partilham uma cidadania mas jamais se misturam. Todos os americanos são estrangeiros no Novo Mundo ¿ e estranhos entre si. Dessa idéia decorre a aceitação pacífica do termo afro-americano, que define os negros pela referência à África. Entre nós, os racialistas, inveterados imitadores, pretendem fabricar os afro-brasileiros. Para isso, precisam inventar uma narrativa falsificada da história do Brasil.

Os hispânicos, um termo que recobre todos os imigrantes latino-americanos, inclusive os brasileiros, são o fruto mais recente do conceito de melting-pot. Oriunda do arbítrio da classificação censitária, a categoria fantasiosa invadiu o discurso político americano e se tornou um produto de mil e uma utilidades. A Fundação Ford, dínamo internacional do multiculturalismo, cria e financia entidades ¿representativas¿ dos imigrantes mexicanos. O intelectual conservador Samuel Huntington, no livro ¿Who Are We?¿, de 2004, descreve os hispânicos como uma ameaça à identidade dos EUA.

Mas, fora da esfera do censo e desses elusivos discursos políticos, os hispânicos não existem. Os imigrantes latino-americanos não se comportam como uma minoria com interesses específicos, mas procuram mimetizar a nação à qual almejam pertencer. Muitos deles alistam-se no Exército para abreviar os trâmites de obtenção de cidadania e recebem o sonhado greencard nos campos de batalha do Iraque. Uma lenda urbana assevera que, como os negros, eles são eleitores cativos do Partido Democrata, mas isso não é verdade. Em 2004, Bush conquistou 45% dos votos hispânicos. Na Flórida, mais de um quinto dos hispânicos são cubano-americanos, que votam no Partido Republicano.

A vantagem dos democratas entre os hispânicos decorre de suas posições mais liberais sobre o tema da imigração. Mas muitos imigrantes católicos latino-americanos são atraídos pela ênfase republicana nos valores da família e da religião.

Obama, sabiamente, continua resistindo ao canto de sereia da racialização de sua campanha. Sábado, na Carolina do Sul, logo depois de conquistar os votos dos negros e surrar Hillary por 55% a 27%, ele reiterou o mantra de que ¿não se trata de brancos contra negros, mas de uma batalha do passado contra o futuro¿. Se, na Flórida, Hillary pretende esburacar a fortaleza de Obama com um bombardeio de votos hispânicos, a melhor estratégia talvez seja conquistar os eleitores brancos.

DEMÉTRIO MAGNOLI é colunista do GLOBO, sociólogo e doutor em geografia humana pela USP