Título: A mensagem de uma dama da esquerda
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Fonte: Correio Braziliense, 02/05/2009, Mundo, p. 22

A França não teve, antes nem depois dela, uma primeira-dama como Danielle Mitterrand, companheira de vida e militância do falecido presidente François Mitterrand (1981-1995) desde a resistência à ocupação alemã, na Segunda Guerra. Aos 85 anos, ela continua sendo para a esquerda francesa e europeia um baluarte, amiga da América Latina, de Fidel Castro, ¿sobretudo da Revolução Cubana¿, como fez questão de observar em entrevista à coluna. Na semana passada, madame Mitterrand esteve em Brasília para uma série de compromissos ligados à Fundação Frances Libertés, que ela preside, e para uma concorrida palestra no Iesb, onde falou a um público jovem sobre o tema que focaliza seu trabalho atualmente: a urgência de um estatuto internacional que defina o acesso à água como um direito humano acima da lógica onipotente do mercado.

A fundação dá grande importância à questão do acesso universal à água potável. Como a senhora vê a situação no Brasil? O problema da água é universal, e o Brasil faz parte dele. Chegamos à compreensão, na fundação, de que não é possível respeitar os direitos humanos, o direito à vida, sem assegurar a todos o acesso à água. Por isso, é preciso estabelecer um estatuto da água e restituir a ela o seu papel original, que é o de perpetuar a vida.

O Brasil tem abundância desse recurso. Ele é bem utilizado? Não é uma questão de abundância. Antes de mais nada, a água está poluída pelo mundo todo, e no Brasil também. Na França, 70% dos rios estão poluídos, e 63% muito poluídos. Apenas 10% ainda são propícios à vida. Com os lençóis freáticos, a situação é a mesma. E se não dispusermos de água potável, não pode haver vida.

A senhora coloca a questão da água em termos do bem comum contra os interesses do mercado. É uma nova face da polarização entre esquerda e direita? É a escolha do tipo de sociedade que queremos. Vivemos em uma sociedade na qual toda a lógica se orienta para o mercado. É normal que as políticas sejam conduzidas atualmente nessa direção. O que estamos percebendo é que essa política e essa lógica chegaram ao limite. Porque o impacto dessa poluição dramática no consumo e na distribuição da água nos obriga a pensar em ordenar a economia de outra maneira. É, talvez, uma questão de ¿esquerda ou direita¿, mas para mim é uma questão entre quem é lúcido e quem não quer enxergar o problema.

A senhora tem uma relação próxima com a América Latina, onde a esquerda está em moda como nunca esteve, enquanto na Europa parece um tanto demodê. Como a senhora vê isso? Sabe¿ de uns anos para cá, quando converso com alguém sobre um problema sério, não quero saber se a pessoa é de direita ou de esquerda. Mas sabemos que as ideias e os processos que impulsionamos não podem ser abraçados de coração por gente de extrema direita ou de direita, ou que esteja completamente ancorada à lógica atual. Nós procuramos as pessoas que estejam dispostas a tentar salvar á disposto a Nossa missão é passar a mensagem de alerta, dizer que é urgente mudar de alvos, fazer uma inflexão nas políticas atuais ¿ essa é a nossa causa.

A senhora é amiga de longa data de Fidel Castro¿ Sou, sobretudo, uma amiga da Revolução Cubana. Fidel Castro foi escolhido pelos cubanos para dirigir essa revolução.

É possível uma reaproximação entre Cuba e Estados Unidos com Raúl Castro e Barack Obama? Acho que hoje não há razão para essa relação completamente incoerente e aberrante que existe entre uma pequena ilha, de um lado, e um país enorme, do outro. Eu nunca compreendi isso. O tempo em que duas superpotências se confrontavam está totalmente ultrapassado.

Qual é a sua mensagem para esse jovens que nem eram nascidos quando François Mitterrand se elegeu presidente da França, não viveram a Guerra Fria, só conheceram a globalização? Eu não vivi a Primeira Guerra Mundial, mas ela teve influência em toda a minha vida. Estamos falando de um processo histórico vital que os jovens de hoje tentam compreender. Eles não conheceram as pessoas, mas as ideias se prolongam além delas.