Título: Anos Tapioca
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 12/04/2008, Opinião, p. 7

Nestas semanas anteriores ao 120º aniversário da Abolição da Escravatura, gastei algum tempo lendo as atas das sessões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que debateram e aprovaram o projeto da Lei Áurea. Li, entre outros, os discursos de Joaquim Nabuco, a favor; e do barão de Cotegipe, contrário. Aqueles foram anos de grandes debates sobre a consolidação da Abolição e da República.

O Congresso se debruçava sobre a construção nacional e os rumos do país. Os parlamentares eram os construtores de uma nação, e seus discursos apresentavam visões diferentes, se opunham e se uniam, eram discursos e acordos de estadistas.

Ao ler essas atas, lembrei-me dos debates no Congresso Nacional, quando comecei a ter idade para ler os jornais. Acompanhei os discursos feitos durante os chamados "Anos de Ouro", da passagem do Brasil agrícola para o Brasil industrial, da mudança da capital, da construção da infra-estrutura rodoviária e hidroelétrica, da implantação da Sudene e subsídios para o setor industrial. Cada uma dessas decisões provocou fortes debates. Juscelino Kubitschek tinha que debater, mobilizar aliados, contrapor-se às idéias e propostas da oposição.

Ao lado dos grandes temas, havia acusações de corrupção, desvio de verbas, superfaturamentos, mas sem diminuir o tempo dos debates pelos grandes temas que eram feitos e veiculados nos jornais e nas rádios, quando nem havia televisão, muito menos TV Câmara e TV Senado. Eram debates de idéias e interesses, demonstravam visões diferentes e os discursos tinham conseqüências sobre a realidade. Não se esgotavam nas denúncias nem em demissões e prisões, muito menos no vazio.

Acompanhei o "Tempo das Reformas", aquele das discussões a favor ou contra as reformas agrária, trabalhista e fiscal, na política externa. Os debates eram acirrados, entre esquerda e direita, com conceitos, ideologias, propostas novas e velhas idéias que persistiam. Também houve denúncias de corrupção, mas sem perder o rumo das grandes causas.

A partir daí, comecei a participar mais intensamente, ainda fora do Congresso, acompanhando os debates durante os "Anos de Chumbo", que foram também considerados "Anos do Milagre". No Congresso havia coragem, ousadia, riscos, muitas contestações e crença no futuro. Aqui se construía um país livre ou controlado; soberano ou independente; justo ou injusto; rico ou pobre; e para cada um desses caminhos havia alternativas e debates. Que afloravam, repercutiam, criavam seguidores e opositores.

Participei ainda mais dos "Anos da Redemocratização", quando os debates refletiam as ruas e repercutiam nelas. Os debates eram: "o que fazer", "se fazer", "como fazer", "quando fazer". O Congresso casava com as ruas, e conseguimos Anistia, Diretas, Constituinte.

Hoje, sou senador e assisto aos debates de dentro. Sou parte deles, mas devo reconhecer que ou tendemos a endeusar a História, e mostrar o passado como algo grandioso que não foi; ou a demonizar o presente e não ver os grandes feitos realizados; ou nossos debates atuais caíram muito em relação ao passado. Primeiro, porque não estamos presentes no Congresso. Dedicamos mais tempo ao importante trabalho da convivência com a população em cada estado do que ao trabalho de debater idéias, parlamentar, aprovar leis, construir um país. Segundo, porque concentramos nossos discursos nas denúncias de corrupção, na leitura de relatórios, na subserviência às medidas provisórias. Em vez de pavimentar o solo da História, parece que sentimos prazer em pisar na lama, sem sair do lugar.

Corretamente, denunciamos atos corruptos, mas não debatemos medidas que eliminem a corrupção. Trocamos denúncias sobre um ministro que usou cartão corporativo para comprar tapiocas e logo descobrimos que funcionário do governo anterior também pagava tapioca com recursos públicos. Talvez, estes venham a ser conhecidos como "Anos Tapioca". Ou serão "Anos Esquecidos", porque nenhum dos nossos discursos ficará para o futuro, como ficaram os de Nabuco e Cotegipe.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).