Título: Chapa-branca
Autor: Kamel, Ali
Fonte: O Globo, 22/04/2008, Opinião, p. 7

Eugênio Bucci presidiu a Radiobrás do início do governo Lula até abril do ano passado, um período longo. Para fazer o balanço de sua gestão, acaba de lançar "Em Brasília, 19 horas, a guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula". Bucci tenta demonstrar que, em sua gestão, a Radiobrás procurou imprimir "uma direção apartidária, impessoal, para servir à sociedade, atendendo ao direito à informação".

Não posso concordar. Com Bucci, a Radiobrás não foi diferente do que era em gestões passadas. Ela cumpriu fielmente o decreto que define a sua missão: "Divulgar as realizações do governo federal nas áreas econômica, política e social". O próprio Bucci, depois de contar a história legal da empresa, conclui em relação ao decreto: "Não é nada maravilhoso, mas melhorou um pouco, e é o que está em vigor."

Apesar disso, Bucci afirma que fez a Radiobrás produzir bom jornalismo. E, como prova, cita dois bilhetes de José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil, e um de Ricardo Berzoini, então ministro da Previdência. O primeiro reclamou da "objetividade" da Radiobrás, que a transformaria "numa emissora de oposição". O segundo classificava de propaganda oposicionista uma nota sobre paralisação de servidores, ressalvando, contudo, que a estatal não deveria se transformar num "Diário Oficial" nem se submeter à "censura prévia". Em meio ao relato desses bilhetes, Bucci diz a seu favor que, durante o escândalo do mensalão, a Agência Brasil, da Radiobrás, teria publicado 3.500 "reportagens" sobre o assunto e que "não sofreu uma única acusação de sonegação de dados".

Comecemos pelo fim. Como todos nós, jornalistas, estamos acostumados ao padrão chapa-branca da Radiobrás, não chega a surpreender que não tenha havido uma só acusação de sonegação de dados. Aceite Bucci ou não, jornalistas não julgam o trabalho da Radiobrás por este prisma, simplesmente porque ela não tem importância. Ninguém segue o noticiário da Radiobrás à cata de furos nem cobra dela que vigie o poder, ela que é subordinada ao poder.

Sobre os bilhetes, eles suscitam uma pergunta: se representavam uma pressão inaceitável, por que ele os aceitou? Por que não denunciou na hora? Encontro duas respostas: ou Bucci foi enquadrado, e por isso ficou, ou os bilhetes foram tentativas vãs de pressão e, por isso, não deveriam ter sido revelados por quem serviu ao governo calado durante 1.600 dias. Fico com a primeira hipótese. O que os bilhetes revelam é uma guerra entre governismos, um mais chapa-branca do que o outro, mas todos chapa-branca.

A questão fica mais clara quando Bucci discute as "Cartas Críticas", uma análise diária sobre a mídia que Bernardo Kucinski, então assessor de Lula, escrevia para o presidente. Bucci se indignou com duas referências à Radiobrás, principalmente aquela que criticou a hierarquização das manchetes da Agência Brasil e propôs uma nova redação para elas, bastante governista. Bucci entendeu que Kucinski acusava a Radiobrás de omissão e, no livro, esmera-se para provar que não houve omissão alguma, detalhando todos os títulos. A leitura é constrangedora: "Ministro do trabalho toma posse prometendo lutar por salário mínimo", "Lula diz que Marinho tem capacidade de negociar para defender os trabalhadores", "Lula afirma que Berzoini volta à Câmara para ser um defensor do governo", "Recuperação do salário mínimo é meta do novo ministro do Trabalho", "Silas Rondeau descarta risco de apagão até 2009" e "Produção industrial cresce em todo o país".

Esse é o jornalismo "apartidário e impessoal" que Bucci diz ter praticado na Radiobrás. Na verdade, esses títulos demonstram o que eu quis dizer ao falar em guerra de governismos (versão ampliada deste artigo em www.oglobo.com.br/opinião).

Não, a Radiobrás cumpriu sempre as suas atribuições de "divulgar as realizações do governo federal". Aqui e ali, Bucci deixa os fatos à mostra. É chocante o relato que ele faz de 2006: "Nos cinco primeiros meses do ano eleitoral de 2006, o presidente Lula pôs o pé no avião e girou o país de um lado para o outro, dobrando o número de viagens em relação ao mesmo período do ano anterior: viajou 65 vezes, para 53 destinos diferentes, contra 32 vezes e 27 destinos nos cinco primeiros meses de 2005." Com atividade eleitoral tão frenética, Bucci conta que o dinheiro acabou. O que fez então? Esforçou-se intensamente para liberação de mais recursos. Pergunto: é assim que deve agir alguém preocupado com uma gestão "apartidária e impessoal"? Jamais. O certo era esclarecer a quem de direito que atividades de presidente são atividades de presidente e que campanha eleitoral é campanha eleitoral. Uma coisa deve ser coberta pela Radiobrás, a outra, não.

Bucci não percebe isso ou finge não perceber? Creio que não percebe e atribuo o fato à sua falta de experiência na linha de frente do jornalismo. Essa lacuna, aliada ao seu partidarismo, contaminou sempre a sua capacidade de análise nas vezes em que vestiu a camisa do crítico de mídia. Ao analisar a si próprio, sofre do mesmo mal, mas em sentido contrário. Antes, onde havia bom jornalismo, via oposicionismo. Agora, onde há governismo, vê bom jornalismo.

Não, não tenho nada contra Eugênio Bucci na Radiobrás. Creio que ele fez ali o que seus antecessores fizeram. Mas não acho ético que alguém que tenha decidido servir a um governo, a um partido, e que tenha feito isso com esmero, venha, tanto tempo depois, passar a sua história a limpo, vendendo-se como vestal do jornalismo apartidário quando, na verdade, fez exatamente o que aqueles que o convidaram para o cargo queriam que ele fizesse.

ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br.