Título: A outra janela
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 26/04/2008, Opinião, p. 7

Quando, há algum tempo, os aviões começaram a atrasar, todo brasileiro sabia quem eram os responsáveis: a Anac e seus diretores. Mas quando dezenas de crianças são mortas, o único caminho é recorrer à polícia para apurar o culpado pelo malfeito, não há ninguém para responsabilizar e cobrar o fim da sistemática violência contra crianças.

A população fica estarrecida e horrorizada por alguns dias ou meses, mas pouco depois esquece os crimes mais brutais, e nem sequer se pergunta se os bandidos já foram soltos.

Os parlamentares passam dias falando sobre o assunto. Acontecem passeatas, reuniões; há lágrimas, vergonha. Mas por pouco tempo. Se uma tragédia afetar crianças indígenas, como a morte por desnutrição, há pelo menos a Funai. Para as outras, há um Conselho em silêncio diante dos crimes, sem culpa, sem responsabilidade, sem poder.

Quando, em 2007, foi assassinado o menino João Hélio Fernandes, achamos que a barbaridade daqueles que o arrastaram pelas ruas do Rio de Janeiro tinha chegado ao limite. De lá para cá, vimos uma menina de 15 anos mantida presa em uma cela da cadeia de Abaetetuba, no interior do Pará, juntamente com 20 homens; uma menina de 12 anos torturada e mantida como escrava pela mãe adotiva em Goiânia; uma menina de 9 anos espancada, estuprada e enforcada em Santo Antônio do Descoberto, em Goiás. No Ceará, uma menina de 3 anos, com o nome de Luana de Jesus, morta depois de estuprada; na semana anterior, no mesmo Ceará, uma de 7 anos morreu da mesma forma. Dezenas de casos de violência contra crianças têm aparecido nos noticiários nestes últimos anos.

Agora, a polícia diz que um pai e sua esposa assassinaram uma menina de 5 anos, jogando-a pela janela do sexto andar do apartamento onde moravam, na tentativa de encobrir um estrangulamento cometido minutos antes. De tão inverossímil, temos o direito de duvidar, antes do julgamento, que uma tragédia tamanha tenha acontecido assim. Mas quando o nosso poeta disse que "um sonho sonhado por todos é realidade" queria dizer também que um pesadelo sofrido por todos é realidade.

Nada pode reduzir a responsabilidade de cada um dos que cometem crimes contra nossas crianças. Mas quando os bandidos são muitos, não se pode ignorar que há algo mais, uma espécie de entendimento social que induz, ou pelo menos tolera a maldade. Quando os crimes se sucedem, cada um parecendo ser único e nos fazendo esquecer o anterior, algo doente está acontecendo na sociedade.

A principal doença está no esquecimento. A cada barbaridade, choramos, mandamos fazer camisetas com fotos da vítima, vamos às ruas protestar, assistimos com alívio aos bandidos serem julgados, ficamos com medo de ver a Justiça libertá-los, e quase sempre nos indignamos quando eles são soltos, pouco tempo depois. Estes são os vetores de nossa doença: a impunidade, o esquecimento, a tolerância. Tolerância com os crimes e com a realidade social que induz a mais crimes.

Se o pesadelo sofrido por todos faz a triste realidade, a triste realidade induz ao pesadelo. Toleramos e esquecemos os crimes bárbaros porque vivemos na barbaridade. No mesmo momento em que acontece o pesadelo de um pai jogando a filha pela janela, para esconder o crime de estrangulá-la (caso se confirme a denúncia da polícia de São Paulo), crianças brasileiras morrem de dengue, por omissão de autoridades e conivência de todos nós. No dia seguinte à morte da Isabella Nardoni, como nos dias seguintes à morte de João Hélio Fernandes, centenas de milhares de crianças acordaram sem ter o que comer, milhões foram à escola apenas pela merenda, e saíram da escola sem aprender qualquer coisa nova. Estão sendo deixadas para trás, atiradas pela janela da História. Serão mortas-vivas no desemprego, no baixo salário. E estarão condenadas a ver, depois, seus filhos também jogados pela janela pela qual, de forma mais discreta, são jogadas milhões de crianças sem futuro, portanto sem vida, mesmo quando não são estranguladas e jogadas pela janela de um apartamento.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).