Título: Qual democracia?
Autor: Passarinho, Jarbas
Fonte: Correio Braziliense, 12/05/2009, Opinião, p. 19

Nem sempre o que se define como democracia, entre as diversas doutrinas sociais contemporâneas, corresponde ao que se vê praticado de fato. Maurice Duverger, o destacado cientista político de esquerda que escreveu, entre outros, o livro clássico Partidos políticos, define regime democrático aquele em que os governados elegem livremente os governantes e a oposição pode chegar ao poder. Duas características ressaltam dessa síntese da definição de regime democrático: eleições livres e governantes eleitos pelos governados.

Mais elaborado, o respeitado Georges Burdeau, autor de La Démocratia, editado em 1956, afirmava: ¿O sentido da democracia mudou. Na democracia governante, de ontem, o povo abandonou sua soberania transferida para seus representantes. A democracia governante é dispensável da massa, como intercessora para concretizar as reivindicações do povo, como exige a democracia de hoje, a governada, onde a participação dos cidadãos se estende. A democracia governada é inseparável de uma concepção liberal do papel do Estado; a democracia está ligada à interpretação socialista ou intervencionista da função do poder. É, pois, inevitável que o povo assuma, ele mesmo, diretamente, a responsabilidade de seu destino¿.

Como não há um, mas vários marxismos, até os imaginários, como ironicamente Raymond Aron descreve em livro, conquanto todos disputem a primazia do primado dos princípios de Karl Marx, é adequado colocar, entre eles, a democracia marxista de Hugo Chávez. Diz Burdeau que o marxismo não contesta os princípios sobre os quais repousa a democracia clássica que considera incapaz de satisfazer efetivamente seus propósitos, uma vez que tem uma concepção falsa da condição humana.

Fazendo política estudantil secundarista em Belém, presidi o diretório do colégio Paes de Carvalho, nos idos de 1936. Integralistas, ostensivos, e comunistas (na clandestinidade) sucessivamente tentaram cooptar-nos. Participei, inicialmente, de três palestras dos integralistas, onde a capacitação política passava pela encíclica Divini Redemptoris, de Pio XI, contundente objurgação ao marxismo.

Num comício, em praça pública, um padre magro, trajando batina, nos empolgou defendendo a encíclica. Fui dos que lhe palmearam efusivamente as palavras, ainda não esquecida a revolta comunista de 1935, obedecendo Prestes ao Komintern. Nas preleções, porém, de capacitação política, a tese permanente centrava-se em ¿fazer do Brasil um país independente¿. Nas comemorações ¿ ensinavam-nos ¿ não se cantar a segunda estrofe do hino, porque seria absurdo saudar um país que se confessava deitado eternamente em berço esplêndido. Agradeci o convite, mas não aderi ao que me sugeria mimetismo das ideias de Hitler, que considerava um tirano.

Então, conheci o primeiro comunista, colega de turma discreto e sempre silente. Convidou-me a conhecer os fundamentos do comunismo, em sete lições que constituíam as bases da capacitação política dos simpatizantes. Resisti às duas primeiras, sobre o Manifesto de 1848, de Marx e Engels. A terceira explanação dedicou-a ao materialismo histórico. Interrompi-o. Disse-lhe que cria na alma, em Deus, professava a religião católica, apostólica romana e era totalmente avesso ao materialismo. Despedi-me da iniciação dos simpatizantes, que melhor dizendo não cheguei a ser, senão ouvinte sem compromisso, exceto dar minha palavra de não vazar para ninguém o nosso contato.

Recebi a represália. Os comunistas, e também os integralistas, me apodaram ¿podre¿, politicamente, porque defendia o regime democrático. Os marxistas, porque Marx lhes ensinara que os direitos fundamentais burgueses eram apenas formais, já comprometidos com a exploração do homem pelo homem nas relações básicas de trocas segundo a teoria marxista do valor. Os adeptos de Plínio Salgado consideravam a democracia burguesa uma farsa, leniente com os comunistas, ao contrário dos ensinamentos de Pio XI. Surpreso, vi, mais tarde, os satélites de Moscou, na Europa do Leste, chamarem-se oficialmente de Repúblicas Democráticas, e o Vaticano defender claramente a Democracia Cristã. No período colonial, a América Latina foi campo de cultura de Espanha e Portugal. Madri estabeleceu os vice-reinados, colônias hispânicas, e Lisboa, as capitanias hereditárias.

Até os anos 1960, vinha o Brasil de uma estabilidade política, desde 1945. Uruguai e o Chile foram apontados, pelos cientistas políticos, como exemplos de democracia estável. Os demais assemelhavam-se, quanto aos regimes democráticos, ao que Otávio Mangabeira definiu como ¿plantinhas tenras¿. Os efeitos da Guerra Fria fizeram-se sentir com a expansão do comunismo. No Cone Sul, os países constitucionais viveram o que Karl Loewenstein chama de dilema: uma vez atacado por guerrilhas, se não reagir é suicídio. Se responder fogo com fogo, torna-se autoritário. Brasil, Argentina e Chile são exemplos do dilema a que o país decidiu responder fogo contra fogo.