Título: Efêmero e eterno
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 07/06/2008, Opinião, p. 7

Na biologia, todos somos efêmeros; na História, alguns conseguem ser eternos. O Brasil assistiu ao triste adeus a um político, mostrando a vida efêmera, mas ficando na História como cidadão eterno.

O que fez a diferença não foi apenas o fato de o senador Jefferson Péres ter sido um defensor da ética, em um mundo político corrompido por suas regras e práticas. Há muitos outros como ele, mas não receberão o mesmo tratamento. A diferença é que ele defendia a ética como uma causa. Não ficou prisioneiro da política do efêmero, de cada escândalo.

Outros políticos brasileiros têm suas mãos limpas de dinheiro público e denunciam crimes de corrupção. Mas raros conseguem sair da efemeridade do dia-a-dia do jogo político, para mergulhar na permanência histórica das decisões que mudam o país. Inclusive para fazê-lo sem corrupção.

A política ficou efêmera, e, em conseqüência, os políticos também. Perdemos a dimensão histórica de nossos gestos. O mandato a serviço da História inverteu-se na política a serviço da manutenção do mandato. A atividade pública e histórica ficou privada e circunstancial. Essa é a principal causa da tragédia do vazio político, do descrédito, da descrença.

Ao ter consciência de como é efêmera sua existência, o soldado sabe que há uma História a ser construída com sua própria vida. E fica eterno, por ser efêmero. Perdemos este sentimento: a História sumiu da política. A urna substituiu a História; o eleitor, o povo. As convicções foram substituídas por interesses, as concessões passaram a ser regra, a corrupção é apenas um sintoma, grave, de uma doença maior: a política da rotina, fazendo com que o político desapareça com seu mandato, não fica como símbolo, marco na História que ele ajudou a construir.

Jefferson soube fazer a política do permanente. Morreu como um soldado, atingido por um tiro de dentro do próprio peito, no campo de batalha da História. Ele demonstrou ter tido consciência de seu papel histórico, quando assumiu que não seria candidato outra vez, nas condições da política atual: nada acrescentaria à sua biografia, nem aumentaria sua contribuição à História. Sabia inclusive dos riscos de continuar na política; nas eleições com financiamento baseado no setor privado, no vazio do dia-a-dia, no jogo sem conseqüência maior.

Preferia deixar a política para deixar de ser efêmero, porque seu mandato devia estar a serviço do país. Sua vontade de sair estava no coração que o tirou da cena política e colocou-o no cenário histórico: do efêmero para o eterno.

A ética era sua bandeira; mas também a soberania do Brasil sobre seus recursos, especialmente a Amazônia; o bem-estar de seu povo, a educação, a saúde, o emprego. Defendia insistentemente um programa republicano que fizesse do país uma nação, para todos e com futuro. Tentou isso aceitando compor um chapa à Presidência mesmo sabendo que o efêmero tem muito mais votos. Ele enfrentava críticas ao defender o rigor fiscal e dizer que seu compromisso era maior com o país e o seu povo, do que com o eleitor do momento, no dia da eleição. E disse que o descontente com sua coerência não precisava dar-lhe o voto; preferia ir para casa tranqüilo, como um homem-de-bem comprometido com seu país, que tentou mudar.

Ele tinha o sentimento de nação e de História, essa foi sua diferença. Não pertencia a qualquer corporação, nem apenas a seu tempo. Não votava pensando na próxima eleição, mas no caráter permanente da História. Não votava conforme queria o eleitor, mas como precisava o povo e a nação brasileira. Sabia que era um ser efêmero, mas fazia política comprometida com a permanência do povo e do Brasil.

Foi essa maneira de fazer política, comprometida com a História, que fez dele um político eterno. Independente do mandato, que ele não procuraria repetir, e independentemente da própria morte.

Era tão incorruptível que não se submeteu à política efêmera; mesmo no tempo em que o efêmero domina a política. Isso fez toda a diferença.

CRISTOVAM BUARQUE é professor da UnB e senador (PDT-DF).