Título: O público e os amigos
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Fonte: O Globo, 12/06/2008, Opinião, p. 7

Oauge dramático da crise financeira nos EUA aconteceu quando se verificou que o Bear Stearns, o quinto maior banco de investimento de Wall Street, estava pela bola sete. Com perdas expressivas, vítima de uma crise de confiança, o banco sofreu uma corrida que o deixou literalmente sem dinheiro.

Se não fosse socorrido, fecharia, levando para o buraco seus credores e seus clientes. Agravante: pela legislação vigente no momento, o Federal Reserve, Fed, banco central dos EUA, só podia conceder empréstimos a bancos comerciais. Logo, parecia um desastre inevitável.

Em um fim de semana, porém, o Fed montou uma operação pela qual um outro banco de investimento, o JP Morgan, comprou o Bear Stearns, tendo acesso a um financiamento indiretamente fornecido pelo banco central.

Houve algumas críticas, do tipo: dinheiro público para salvar banqueiros e especuladores?

Tirante isso, porém, quase todo mundo respirou aliviado. O Bear Stearns não era apenas muito grande para quebrar, era também muito conectado. Derrubaria não apenas seus clientes, mas toda a teia de bancos, empresas e pessoas com as quais tinha negócios. Além disso, o fato criaria um ambiente de pânico: se esse bancão pode quebrar, então todo o sistema está contaminado. Daí a uma corrida bancária, seria questão de dias.

Eis o ponto: bancos precisam ser resgatados não para salvar banqueiros, mas a instituição, seus clientes e o sistema financeiro. Como foi no caso Bear Stearns, cujos donos foram obrigados a vender as ações a preço de liquidação. Como foi também no caso do Proer brasileiro, hoje tomado como exemplo de sucesso na literatura econômica: os donos perderam seus bancos, que foram repassados a outros controladores, com saneamento de algum modo financiado com dinheiro público.

Grandes empresas não financeiras têm tratamento parecido em diversos países. Na Europa, por exemplo, governos intervieram e alguns gastaram dinheiro público para salvar suas companhias aéreas estatais ou nacionais.

Portanto, é amplamente compreensível que a Varig chamasse a atenção do governo brasileiro. Companhia grande, prestando um serviço público, regulado, com milhares de clientes, funcionários e pensionistas, credora e devedora do governo ¿ era mesmo um caso de intervenção.

O problema, em qualquer país do mundo, é que situações assim colocam no mesmo saco o interesse público (preservar o funcionamento do mercado e garantir direitos legítimos de pessoas e empresas) com interesses privados oportunistas.

É exatamente para lidar com esse tipo de situação, entre outros objetivos, que se desenvolveu o sistema das agências independentes regulando mercados. Imaginem se não houvesse banco central, o melhor exemplo de agência, que regula o mercado financeiro, o mais difícil. Caberia aos governantes de plantão determinar, sem qualquer regra ou restrição, quem ficaria com este ou aquele banco. A facilidade para atender os amigos e correligionários seria imensa.

No caso Varig, mesmo uma agência como a Anac, enfraquecida e aparelhada politicamente, colocou obstáculos e restrições à vontade dos funcionários do Executivo. A todo momento foram levantadas questões do tipo o que pode, o que não pode.

É claro que, para um governante impoluto e guiado pelo bem comum, um déspota esclarecido, seria muito mais fácil não ter essas barreiras. De certo modo, foi esse o argumento do presidente Lula e seus principais colaboradores quando investiram contra as agências herdadas do governo FHC. Reclamavam que o governo eleito não podia exercer o mandato que recebera nas urnas.

Na verdade, podia, como pode qualquer governo democrático submetido a leis e instituições. Apenas dá mais trabalho, exige mais competência e criatividade.

Mas o presidente Lula e seu pessoal sempre agiram como se o mandato popular desse um poder absoluto, inclusive para absolver os correligionários que cometessem ¿erros¿ em nome da causa. Isso leva ao caso Varig. Já se sabe que muitas ilegalidades e irregularidades foram cometidas, o que levanta a suspeita legítima de que se começou tendo em vista o interesse público, mas depois, já que se estava com a mão na massa, deixaram-se entrar os amigos do rei.

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. E-mail: sardenberg@cbn.com.br.