Título: Legalidade democrática
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 19/07/2008, Opinião, p. 7

Tenho amigos que sentem orgulho por terem sido algemados por causa de suas idéias. Que teriam gostado se, naquele tempo, a televisão tivesse divulgado sua prisão: teriam tornado pública sua luta pela democracia, e o registro da prisão seria uma forma de protegê-los. Mas eles não conseguiram sequer gritar. Foi preciso que mães, esposas, entidades como OAB, ABI, CNBB e outros grupos se mobilizassem, tentando fazer o país saber o que acontecia e onde estavam presos.

Quando assisti ao noticiário destes dias, em que a Polícia Federal prendeu acusados de formação de quadrilha, tráfico de influência, enriquecimento ilegal, lavagem de dinheiro, imaginei o que pensariam alguns desses amigos que foram presos lutando para que isso não voltasse a acontecer. O que pensariam da ação da polícia na democracia pela qual eles tanto lutaram.

O primeiro pensamento foi que, desta vez, havia um mandado, assinado por um juiz, que autorizava a prisão. Os policiais tinham levado meses juntando provas, fazendo escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Não escolheram aleatoriamente quem prender.

O segundo foi que sentiriam inveja da proteção que o espetáculo teria dado, naquele tempo de prisões clandestinas. Se tivesse havido um espetáculo quando os soldados do Exército prenderam três jovens de uma favela, eles não teriam sido entregues à morte por uma gangue rival. A prisão exibida pela televisão, acionada pela polícia, humilha o preso, mas torna-se pública, informa para onde ele está sendo levado, trabalha com transparência.

De certa forma, os amigos algemados de antes pensariam na estranha situação de que no passado eles eram presos com orgulho, embora com medo, e hoje o orgulho é dos policias e os presos sentem vergonha, mas nenhum medo.

Outro sentimento que meus amigos teriam é da inveja como o sistema judiciário agora funciona com rapidez. Em poucas horas, qualquer preso é solto, e solto outra vez, se a polícia voltar a prender, mesmo que com novos argumentos.

Outra coisa que chamaria a atenção dos meus amigos seria a competência e a honestidade da polícia. Acostumados, no passado, a temer e odiar policiais que os perseguiam e matavam seus companheiros, eles ficam surpresos como os de hoje resistem à corrupção e enfrentam poderosos. Alguns chegam a ter honestidade e coragem de participar da simulação de aceitar propinas de até um milhão de dólares, apenas para juntar provas contra os bandidos.

Mas, sobretudo, é possível que meus amigos que lutaram pela democracia fiquem divididos entre a justiça da prisão dos corruptos e a legalidade do aparelho judicial. Porque não se pode falar em justiça sem legalidade, mas é possível falar em legalidade sem justiça. Eles pensariam que é possível a polícia estar exagerando, ao prender pessoas mesmo que com base em gravação de conversas e mandados de prisão autorizados judicialmente. Mas, apesar da dúvida, acho que entre a pressa da prisão e a pressa da soltura, meus amigos certamente preferirem a primeira, consideram mais democrática a pressa da polícia do que a estranha pressa da Justiça.

Depois de tanta luta pela democracia, os amigos se animam com o fato de que, no Brasil, os ricos também são presos, mesmo que por pouco tempo. A legalidade não se tornou justa. Reclama-se pela primeira vez do uso de algemas, como se elas tivessem sido inventadas ontem, como se não fossem usadas diariamente em prisões de criminosos que não têm dinheiro para pagar a bons advogados, como se as algemas só fossem ruins porque estragam o tecido das belas roupas dos ricos, o que não acontece na prisão de pobres, que aparecem na televisão sempre sem camisa.

Depois de tantos anos de uso, as algemas se tornaram um abuso. O abuso agora é a algema, e não o crime cometido - formação de quadrilha, sonegação de impostos, lavagem de dinheiro. É possível até que as algemas se tornem ilegais. Mas isso certamente não tornará a legalidade mais democrática.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF