Título: Cresce o abismo
Autor: Flores, Mariana
Fonte: Correio Braziliense, 17/05/2009, Economia, p. 21

Após 12 anos de melhoria gradual, desigualdade de renda volta a aumentar no Distrito Federal por causa da crise econômica. Os mais pobres ganham o equivalente a 8,9% do salário dos mais ricos

Vera Lúcia: crise atrapalhou faturamento da loja e reduziu sua renda mensal A crise econômica acentuou as divergências salariais em Brasília, cidade caracterizada por ter um dos maiores abismos entre ricos e pobres do país. De setembro de 2008 a fevereiro deste ano, a renda dos 10% mais carentes do Distrito federal, com salários de até R$ 415, subiu 1,4% enquanto a dos 10% mais abastados, que ganham acima de R$ 4.617, aumentou bem mais: 5,4%. Em média, o reajuste dos 1,1 milhão de trabalhadores ocupados da capital federal foi de 4,3% no período.

Com um incremento diferenciado, a proporção do salário dos 10% mais ricos recebida pelos 10% mais pobres voltou a diminuir após anos de recuperação. De fevereiro de 1996 a fevereiro de 2008, a relação saltou de 5,2% para 9,4%. Os primeiros sinais da crise, no entanto, inverteram a trajetória. A renda dos mais pobres hoje equivale a 8,9% da recebida pelos mais ricos (veja quadro), segundo estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) a pedido do Correio ¿ o número mais recente se refere a fevereiro de 2009.

O volume vinha aumentando ano a ano alavancado pelo crescimento econômico, políticas de valorização do salário mínimo ¿ os acréscimos puxam também a renda dos que recebem frações do mínimo ¿, e a concessão de benefícios assistenciais. Em época de crise a alta das disparidades é esperada, de acordo com especialistas em mercado de trabalho e em pobreza. Segundo eles, tradicionalmente o desaquecimento da economia castiga mais a população de baixa renda que os demais trabalhadores.

¿A crise prejudica mais os mais pobres, que dependem mais de uma evolução favorável da economia que os outros. É de se esperar que aumente a concentração de renda em épocas de crise. O desemprego está aumentando e ele cresce primeiro entre a mão de obra menos qualificada¿, afirma o professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Pedro Demo, especializado em estudos sobre a pobreza.

No Distrito Federal, a lacuna entre os dois grupos se torna ainda maior em função do grande número de servidores entre os 10% mais ricos ¿ 75% dos que fazem parte do grupo trabalham no setor público ¿, uma vez que a categoria não sofre com a ameaça de desemprego e tem conseguido manter os reajustes salariais negociados com o governo antes da turbulência econômica. ¿A crise sempre vai afetar a população mais pobre porque aumenta o desemprego e torna o trabalho mais precário. Já os 10% mais ricos, como são servidores, não sofrem tanto com a crise¿, destaca o técnico do Dieese Antônio Ibarra.

Integrante desse universo, a moradora da Estrutural Vera Lúcia da Silva, sócia de uma loja de aluguel de vestidos de noivas e de festas, tem sentido o desaquecimento da economia. Com uma renda mensal que atualmente gira entre R$ 300 e R$ 400, considerando os R$ 130 recebidos do Bolsa Família, Vera Lúcia, de 29 anos, diz não saber como chega ao fim de cada mês. Recém-separada do marido, ela mora com o filho de sete anos e tem a ajuda da sogra para colocar comida na mesa todos os dias. Mas as contas atrasadas se acumulam. A culpa, arrisca, é da crise econômica, que diminuiu a demanda na loja.

O ritmo dos casamentos reduziu com a crise, segundo Vera Lúcia. ¿No ano passado, eu alugava em torno de sete vestidos por mês. Em abril, aluguei apenas três vestidos. Acho que as pessoas estão adiando os casamentos por causa da crise.¿ Cada noiva tem que desembolsar em torno de R$ 350 para alugar o próprio vestido e dois para as damas de honra. A tendência é que os negócios continuem frios até mesmo neste mês, conta. ¿Mês das noivas aqui na Estrutural é em dezembro, que é quando as pessoas recebem o 13º salário e podem gastar mais.¿ Enquanto isso, as contas continuam atrasadas. ¿Estou devendo há muitos meses as contas de água e luz, tenho dívidas com o cartão de crédito e uma dívida de uma televisão que comprei no ano passado, não sei como vou pagar tanta coisa.¿

Perfil dos extremos Não são só as diferenças salariais que dividem os dois grupos. As características dos 10% mais pobres e dos 10% mais ricos também os colocam em mundos bem diferentes. De cada 10 pessoas que constituem o contingente de 110 mil pessoas que ganham salários de até R$ 415, sete são mulheres. Já entre os que têm maiores salários elas são minoria ¿ equivalem a 39,7%. Entre os mais ricos não há funcionários do comércio ou empregados domésticos, por exemplo, enquanto 13,1% dos mais pobres estão no varejo e outros 27,6% desenvolvem atividades domésticas.

Dos que ganham mais, 74,9% trabalham no setor público, onde não há nenhum componente dos 10% mais pobres. Os locais de moradia também os dividem. Mais de um terço, 37,6%, dos que ganham acima de R$ 4. 617 moram no Plano Piloto ou nos lagos Sul e Norte. Outros 49,6% moram nas cidades de renda intermediária do DF e apenas 12,8% moram nas regiões mais carentes. Já entre os mais pobres não há nenhum morador do Plano Piloto ou dos lagos e 60,3% moram nos locais mais pobres do DF.