Título: Inflação em alta, contas em atraso
Autor: Duarte, Patrícia
Fonte: O Globo, 11/08/2008, Economia, p. 15

Com aperto na renda, consumidor paga crediário, mas fica inadimplente em luz e telefone

Patrícia Duarte

Animada nos últimos anos pela inflação baixa e os ganhos de renda, a empregada doméstica Maria Araújo Silva não pensou duas vezes: foi às compras. Entre os eletrodomésticos e móveis que adquiriu no crediário, se destacam uma máquina de lavar roupa, já quitada, e um DVD e um armário cujas prestações ainda estão sendo pagas, ao custo de R$95 mensais. O que ela não contava era com a recente escalada dos preços dos alimentos, que corroeu parte de sua renda de aproximadamente R$900, pilar de uma família de cinco filhos e dois netos. Diante do aperto, se viu obrigada a atrasar o pagamento de algumas contas, e optou pelas de luz e água, e não pelos empréstimos.

Ela é um exemplo do movimento que ganha força no país: dar prioridade aos pagamentos bancários em vez de outros, sobretudo de serviços públicos.

- Acho melhor fazer isso, porque ganho mais tempo. Os serviços não são cortados no dia seguinte. Eu pago as contas, mas com 15, 20 dias de atraso - explicou Maria.

- Já estamos vendo um pequeno aumento na inadimplência recentemente. Tenho ouvido isso de todas as operadoras - confirmou ao GLOBO José Fernandes Pauletti, presidente da associação que reúne as operadoras de telefonia fixa (Abrafix), acrescentando que, em geral, a inadimplência (30 dias de atraso) no setor fica entre 3% e 3,5%.

O novo cenário começou a ser desenhado nos últimos meses devido aos juros em elevação e à inflação, sobretudo a dos alimentos, que já tiveram alta de preços próxima a 10% este ano. Para Pauletti, há algumas explicações. A relação custo-benefício de atrasar contas de luz e telefone é mais favorável ao consumidor. A cultura bancária está mais disseminada também, apontam especialistas.

Inadimplência estável nos bancos

Não pagar em dia uma conta de telefone pode ser menos penoso do que atrasar uma prestação do crediário. No primeiro caso, há multa de 2% sobre o valor da conta, mesmo percentual cobrado no caso de não pagamento da prestação. Mas as conseqüências para o consumidor variam. O crediário em atraso rapidamente vira nome sujo na praça. Já as telefônicas só podem cortar de vez o serviço dois meses depois de a inadimplência começar. Resultado: estão sendo as primeiras a sofrerem.

O Banco Central (BC) tem percebido esse movimento e concorda que as pessoas estão dando preferência ao pagamento bancário. Sinal disso é a estabilidade na inadimplência -- atrasos de pagamento acima de 90 dias - nos bancos e financeiras. Para pessoa física, por exemplo, ela oscilou entre 7% e 7,4% no primeiro semestre deste ano, mantendo o patamar de 2007. E isso com o volume de crédito crescendo acima de 30% anuais.

A expansão do crédito consignado também ajuda, uma vez que a prestação é diretamente descontada do salário. O funcionário público Raimundo Ferreira Neto sabe bem disso. Todos os meses, cerca de R$2 mil são descontados do seu salário para o pagamento de dois empréstimos consignados e, por causa da corrosão causada pela inflação nos seus ganhos, ele começou a atrasar em alguns dias o pagamento de suas contas de serviços públicos.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Luiz Carlos Guimarães, não é de hoje que o setor sente esse comportamento dos clientes e sofre com uma inadimplência (atraso a partir de um dia) de cerca de 6% do faturamento anual. Além da renda mais apertada, o crescimento do consumo de energia com o aumento nas vendas de eletrodomésticos dificulta o pagamento das contas de luz.

- Com o melhor poder de compra da população de baixa renda, que adquiriu mais eletrodomésticos, graças ao crédito, a conta de luz ficou mais cara - afirma o superintendente de Regulação Econômica da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Davi Antunes Lima.

Apesar disso, tanto os setores de serviços públicos quanto os especialistas em crédito não apostam que a inadimplência vai estourar de vez. Primeiro, porque as pessoas tendem a se adaptar à nova realidade, mesmo que isso demore alguns meses. E, depois, porque as apostas são de que a inflação deve regredir a médio prazo, com as altas de juros pelo Banco Central (BC). Mas, enquanto isso não ocorre, a população faz malabarismos para honrar seus compromissos.

A vendedora de marmitas Míriam Ventura da Silva teve de reajustar os preços de seus produtos por conta dos alimentos mais caros. Resultado: suas vendas despencaram de uma média de 50 marmitas por dia para cerca de 20.

- Sempre procuro uma promoção e uso menos carne vermelha. Agora, estou usando mais frango.