Título: Pedofobia no Brasil
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 13/09/2008, Opinião, p. 7

A CPI da pedofilia horrorizou o Brasil com as denúncias que fez sobre a maldita prática de criminosos contra nossas crianças. Descobrimos que ela é mais comum do que se imaginava, e é muitas vezes cometida por insuspeitos senhores. O nome dessa bestialidade deveria ser pedofobia, que segundo o dicionário significa sentir aversão a crianças. No caso do Brasil, a pedofobia é uma prática muito mais generalizada.

A prostituição infantil é uma forma extrema de pedofobia. Mas, há décadas, é tratada como um mal tolerável, como se fosse menos grave prostituir uma criança ou uma adolescente do que utilizá-las nas práticas da pedofilia.

Abandonar crianças nas ruas também é uma forma de pedofobia. E no Brasil essa prática é aceita com normalidade. Como se fosse uma coisa comum deixar milhões de meninos e meninas sujeitos à brutalidade do abandono. Os pais abandonam suas crianças por impossibilidade de mantê-las, mas os governos, que não criam mecanismos de proteção às crianças, são pedófobos. Amam a economia e as obras, não as crianças. E nós, que assistimos ao abandono, sem um pingo de revolta, somos pedófobos também.

Deixar crianças sem brinquedos, condenadas ao trabalho quando deveriam brincar, assassinadas, espancadas, esquecidas, abandonadas são formas de pedofobia com as quais a sociedade convive, tolera sem se dar conta, sem se horrorizar, salvo em alguns casos em que a violência chega a brutalidades de violência sexual.

Condenar crianças a um futuro excluído das vantagens da sociedade, cortar pela raiz seus talentos, por falta de escolas ou de escolaridade completa e de qualidade, também é pedofobia. Não pagar bem aos professores e em troca tolerar que eles não se preparem bem, não se dediquem, que façam greves deixando para as crianças a perda de um tempo irrecuperável, é uma forma de pedofobia que a sociedade brasileira comete, por ação de alguns e omissão de muitos. Nós todos praticamos essa pedofobia quando sabemos que a cada minuto 60 crianças abandonam a escola, e que as que ficam até o final do ensino médio recebem uma formação pobre. Perguntar quanto custa mudar essa realidade, aceitando que haja dinheiro para todo o resto, menos para as crianças e suas escolas, é uma forma de pedofobia bastante disseminada na sociedade brasileira. A mesma sociedade que se horroriza com a maldade da pedofilia.

Cercar as escolas boas para uns poucos, deixando milhões do lado de fora; cercar os hospitais de qualidade, deixando crianças doentes no lado de fora; cercar os supermercados, deixando de fora crianças com fome, são práticas pedófobas, que muitos de nós nem sequer percebemos.

O pedófilo rouba o futuro de crianças marcando-as para sempre com a violência sexual. Mas os pedófobos também roubam esse futuro, quando deixam as crianças condenadas ao analfabetismo, marcando-as definitivamente.

A violência da omissão e da tolerância contra os crimes cometidos contra as crianças é um comportamento pedófobo. E ficamos aliviados quando alguns pedófilos são presos. A culpa nos monstros da pedofilia não deve esconder a responsabilidade de todos os praticantes de outras formas de pedofobia.

Por isso, a resposta é sempre a mesma: não é minha culpa, não há dinheiro, não é possível. Mentiras de pedófobo. Sim, há recursos e a culpa é de cada um de nós que escolhemos dirigentes sem sensibilidade, com espírito pedófobo, que encontram dinheiro para tudo, menos para fazer o que propunha a senadora Heloisa Helena: "Adotemos uma geração de pequenos brasileiros, só uma, dando-lhe tudo de que eles precisam." Pois, se o fizermos, o resto eles farão quando adultos, sem os traumas deixados por pedófilos ou pedófobos que, por meios diferentes, provocam os mesmo resultados: crianças dilaceradas, adultos angustiados. Um presente vergonhoso, o futuro comprometido.

A pedofilia é uma perversão brutal que ocorre em muitos países do mundo. Mas tristemente temos de reconhecer que raros países apresentam o grau de pedofobia que se percebe no Brasil.