Título: Sobras foram aplicadas na eleição de 1990
Autor: Collor, Fernando
Fonte: O Globo, 12/12/2009, O Pais, p. 9

Collor afirma que, dos recursos arrecadados por PC Farias, restaram US$ 52 milhões, usados para ajudar aliados

Há 20 anos, Fernando Collor era eleito como o mais novo presidente do Brasil e o primeiro, pelo voto popular, após o regime militar. O que o tirou do poder não era novo, e continua escandalosamente atual, como mostra o mensalão que ameaça o mandato do governador José Roberto Arruda, no Distrito Federal. Hoje senador pelo PTB, Collor admite que seu tesoureiro em 1989, PC Farias, recolheu o suficiente para acumular sobras de US$ 52 milhões. O maior erro político, o confisco da poupança, a ameaça de suicídio, de tudo Collor fala em entrevista exclusiva a Geneton Moraes Neto, que vai ao ar hoje no programa ¿Dossiê Globonews¿, às 19h05m, com reprises no domingo (17h), na segunda (19h) e na terça (11h).

Geneton Moraes Neto

Qual a proposta mais surpreendente que o senhor recebeu quando estava no Planalto? FERNANDO COLLOR: Recebi de várias fontes as sugestões mais esdrúxulas. Dentro deste rosário de sugestões, a mais ¿singela¿ seria a do fechamento do Congresso. Diziam-me: ¿Fecha o Congresso!¿ como quem diz: ¿Fecha esta porta¿. Eu dizia: ¿Mas vocês se esquecem de que sou o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de quase 30 anos de submissão a um regime autoritário. Não posso trair as minhas convicções, não posso fazer isso.

De quem partiu a sugestão para fechar o Congresso? COLLOR: Não posso (revelar), não foi só de uma pessoa.

Eram políticos? COLLOR: Eram políticos.

Em algum momento, o senhor, que foi eleito com voto popular, teve a tentação de fechar o Congresso para escapar daquele processo? COLLOR: Não. Sou um jogador que joga pesado, duro, vigoroso, mas com as cartas na mesa e obedecendo às regras do jogo, incapaz de fazer uma coisa dessa natureza e de também cair na tentação de outras sugestões que me chegavam, como a de deixar publicar dossiês do SNI, extinto por mim. Os dossiês estavam ali, à disposição, para que os soltássemos. Não permiti que nenhum desses dossiês fosse colocado seja para imprensa, seja para quem quer que fosse.

Quem sugeriu a divulgação de dossiês do SNI para constranger seus adversários obviamente foi um dos seus aliados.

COLLOR: Ex-parlamentares que não haviam sido reeleitos em 1990. Como alguns tinham vários mandatos cumpridos, talvez conhecessem as entranhas daquele serviço tenebroso do SNI.

Os dossiês comprometiam adversários do senhor? COLLOR: É. Falei: ¿Deixem-me ver o que é isso. Mandem trazer os dossiês¿. Já que as pessoas me falavam, mandei trazer alguns.

Tive a certeza de que havia tomado a decisão correta quando extingui o SNI. De segurança do Estado e de informação estratégica para o presidente, os dossiês não tinham nada.

Eram só fofocas e futricas.

A eventual divulgação desses dossiês poderia servir para desmoralizar seus adversários? COLLOR: É. Sem dúvida no mínimo os constrangeria.

Quando enfrentava uma onda de denúncias, o senhor fez um discurso pedindo à população que se vestisse de verde-eamarelo.

Mas os manifestantes se vestiram de preto. Ali, o senhor sentiu que perdeu a capacidade de mobilizar apoio? COLLOR: Sem dúvida. Aquele foi o momento em que percebi que eu havia perdido a Presidência.

Era uma solenidade bonita, em que eu estava assinando atos que beneficiavam os taxistas.

Estava apinhada de gente.

O presidente do Banco do Brasil, o da Caixa, o ministro da Economia. Eu disse ao locutor: ¿Eu não falarei. Falam os que estavam programados, como o representante do grupo de taxistas, o presidente da Caixa. Encerrada a solenidade, me dirigi para o elevador, quando então o pessoal começou a gritar; ¿Fala, Collor! Fala! Fala!¿. Veio, então, o presidente da Caixa: ¿Presidente, não deixe de falar para este pessoal...¿. Voltei. ¿Que saiam no próximo domingo de casa, com alguma peça de roupa numa das cores da nossa bandeira. Que exponham nas suas janelas toalhas, panos, o que tiver nas cores da nossa bandeira, porque assim, no próximo domingo, estaremos mostrando onde está a verdadeira maioria¿.

O senhor se arrepende de ter feito aquela convocação? COLLOR: Eu me arrependo.

Aquilo foi uma atitude temerária.

É o que se chama de cutucar a onça com a vara curta. Ali,talvez por eu estar sob uma pressão muito grande, eu quisesse, no fundo, saber logo qual seria o desfecho de tudo aquilo. Porque foi um processo de tortura. Então, eu disse: ¿Com isso, ou a gente vai se afirmar nas ruas ou então se a gente se sentir abandonado nesse processo, eu já sei que não tenho mais forças para poder lutar. E aí, quando no domingo as informações começaram a chegar de que as pessoas estavam se vestindo de preto ao invés de verde-e-amarelo, eu disse: ¿A Presidência está perdida¿.

Dentro de mim, caiu exatamente esta compreensão de que, ali, o jogo estava perdido.

O senhor diria que este foi o grande erro político na condução daquele processo? COLLOR: Sem dúvida. Foi um erro tático seríssimo.

O senhor tinha a ilusão de que contaria com o apoio popular naquele momento? COLLOR: Tinha.

O que levava o senhor a acreditar nisso? COLLOR: A minha vinculação com o povo era muito forte.

Mas, naquele momento, se ele não estava contra mim, impregnado pela torrente que o noticiário fazia desaguar, eu imaginava que pelo menos o povo estivesse na dúvida. E, estando em dúvida, não tomaria uma posição.

Um dos coordenadores da campanha do senhor à Presidência disse que ouviu do tesoureiro, PC Farias, que as sobras de campanha seriam em torno de 52 milhões de dólares. Onde foi parar tanto dinheiro? COLLOR: As chamadas sobras de campanha foram objeto do escrutínio do Ministério Público, da PF e do próprio STF. Tudo isso consta dos processos que foram movidos contra mim e dos quais fui absolvido.

Que informação concreta PC Farias deu ao senhor sobre as sobras de campanha? COLLOR: Naquele momento da eleição, a legislação não previa, como hoje prevê, essa série de medidas e de pontos que devem ser observados quanto às contribuições oferecidas à campanha.

Não houve a preocupação de se estabelecer critérios objetivos e plausíveis para que esta contabilidade fosse feita. Então, o que aconteceu é que os recursos iam chegando. Só me dava conta de que os recursos chegados eram suficientes ou não em função da disponibilidade que eu tinha do avião e dos carros de som. Quando chegava ao hangar para viajar ¿ e aconteceu no primeiro turno ¿ ,o gerente vinha e dizia: ¿Ah, não pode, porque vocês estão devendo aqui não sei quanto¿. Sentia que os recursos da campanha não estavam chegando na medida das necessidades. Já no segundo turno foi uma loucura total.

O senhor não tem ideia de quanto sobrou? COLLOR: Esses valores: em torno de 50 e poucos milhões.

O senhor tem ideia do que aconteceu com esse dinheiro? COLLOR: Não tenho ideia.

Uma das versões é de que este dinheiro teria sido enviado para fora do Brasil e administrado por PC Farias.

COLLOR: Não saberia dizer.

Somente ele próprio. O que sei é que parte desses recursos foi aplicada nas eleições de 1990.

Parte desses recursos serviram para ajudar os candidatos que apoiavam o governo na eleição de 1990.

Por que é que o senhor continua guardando no fundo das gaveta o livro que escreveu sobre aquele período? COLLOR: Quando levei ao ministro Thales Ramalho alguns capítulos para que ele folheasse e dessa uma opinião, ele tirou os óculos meneando a cabeça e disse: ¿Presidente, isso não pode ser publicado!¿. As pessoas todas estão aí, vivas, têm seus parentes, têm isso, têm aquilo.

Para que criar uma situação tão desagregadora como essa? O que passou, passou. Verifiquei que ele tinha razão.

Quando, afinal, o senhor vai publicar esse relato? Não tenho a menor ideia.

Mas o senhor tem certeza de que vai criar um impacto na política brasileira ? COLLOR: Ah, sim. E que impacto...

Na campanha, o senhor dizia que o candidato do PT é que iria tomar medidas drásticas. Iria mexer na poupança. Mas o senhor é que terminou mexendo.

O senhor estava mentindo para conquistar votos? COLLOR: Não! Não estava mentindo.

Só teríamos uma única chance de debelar a inflação.

Nós iríamos debelá-la num ipon ¿ um golpe de lutas marciais em que a luta termina pela perfeição do golpe dado. Isso gerou um compromisso muito forte.

Comecei, então, a ouvir economistas e pessoas do mercado.

Um desses encontros me marcou bastante porque dele participaram o ex-ministro Mário Henrique Simonsen, o economista André Lara Resende e, naquela época, o homem de mercado Daniel Dantas. Perguntei: como é que o senhor acha, ministro, que o governo pode debelar a inflação rapidamente?¿. E ele ficava conjecturando, pensando em voz alta, intercalado por comentários ora de André, ora de Daniel. Todos chegavam a uma mesma conclusão: quando terminavam de engendrar um raciocínio, diziam: ¿Mas isso, com liquidez de que o mercado hoje dispõe, é impossível. Não dá, não dá¿. André é que chegou e disse: ¿Mas ministro, há uma saída: estancar essa liquidez¿.

Usava uma palavra mais suave para aquilo que acabou sendo feito pelo meu governo.Vira-se André e diz: ¿Ministro, isso pode ser politicamente difícil de fazer ou impossível de fazer, mas tecnicamente não é a saída?¿. O ministro disse: ¿Tecnicamente é a saída, mas não vamos nem adentrar mais nesse assunto, porque politicamente isso é inviável¿.

Começou a se formar dentro de mim a idéia de que teríamos de fazer, junto com o congelamento de preços, uma enxugada nessa liquidez. Nunca nos passou pela cabeça atingirmos a poupança.

Nos passou pela cabeça, num primeiro momento, irmos em cima dos chamados ¿títulos ao portador¿. Mas o mercado é muito esperto. Começou a haver um movimento de capitais saindo dessas aplicações de títulos ao portador e indo em direção à conta corrente e à poupança.

Não houve outra maneira que não o de generalizar o chamado ¿bloqueio dos ativos¿, algo que aconteceu pela primeira vez na história econômica mundial.

Se o candidato Luiz Inácio Lula da Silva tivesse vencido a eleição de 89 e tivesse bloqueado e a poupança e as contas correntes,o que é que teria acontecido com ele? COLLOR: Vou me valer de um depoimento dado pelo hoje senador Aloizio Mercadante, que procurou a então ministra e disse: ¿Zélia, esse era o programa dos nosso sonhos. Só que tínhamos uma certeza: se Lula tivesse sido eleito e ele implementasse estas medidas, não teríamos condições de manter o governo. O governo cairia¿.

Bloquear as contas correntes de milhões de brasileiros foi uma loucura? COLLOR: Foi um gesto tecnicamente amparado, tomando o depoimento não somente do ministro Simonsen mas também dos próprios integrantes da equipe econômica que se formava.

Mas um ato de um voluntarismo muito grande e de coragem, sobretudo.

A decisão, em última instância, foi do senhor? COLLOR: Sem dúvida.

Sem as denúncias de seu irmão Pedro Collor, acha que teria concluído o mandato? COLLOR: Não sei. Não saberia dizer...

Como o senhor avalia o impacto daquelas denúncias? COLLOR: Aquilo foi determinante para que eu sofresse o impeachment.

Por que, ao contrário do que se esperava, decidiu ficar sozinho quando a Câmara votava o pedido de impeachment? COLLOR: Eu estava absolutamente só. Fiquei no meu gabinete sozinho, à noite, somente com a luz sobre a minha mesa acesa. Vez por outra, um rumor ecoava da Câmara, onde se votava o meu afastamento. E eu ali, só, naquele silêncio, esperando.

Por fim, ouvi um pipocar de gritos e vivas e de manifestações de regozijo e alegria. Em seguida, carros passando defronte ao Palácio do Planalto e buzinando, como se fosse uma festa.

Por que o senhor decidiu que a solenidade (em que foi notificado sobre a abertura do processo de impeachment) fosse transmitida pela TV e aberta? COLLOR: Porque eu queria que todo mundo presenciasse uma pantomima. Isso foi uma farsa, um jogo de farsantes, um jogo subalterno, sujo, inóspito, sempre.

Que fique registrada a grande farsa em que se transformou esse afastamento, comemorado em cantos e loas como uma demonstração da vitalidade da nossa democracia, quando, ao contrário, foi a fragilidade de nossa democracia. Demonstrou como é importante ter uma grande e ampla reforma política, para impedir que atores que votaram e me levaram para fora da Presidência da República não poderiam nem teriam condições morais, éticas e de caráter de participarem daquela votação.

Com 60 anos, qual é a grande crítica que o senhor faz ao Fernando Collor de 40 anos, o mais jovem presidente da República eleito no Brasil? COLLOR: A grande crítica que faço é à pouca capacidade que tive de perceber que ninguém governa sem uma base parlamentar sólida. Dentro desse presidencialismo de coalizão em que estamos inseridos ¿ um sistema político inteiramente ultrapassado e defasado ¿ ninguém pode governar sem o Congresso.

Disso não me dei conta o suficiente, embora alertado por companheiros e amigos.

O senhor entrou para a história política do Brasil por dois motivos: por ter sido o primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do regime militar. E por ter sido o primeiro a ser afastado num processo de impeachment.

O senhor tem a sensação de ter jogado fora uma grande oportunidade histórica? COLLOR: Ah, sem dúvida sim.

O senhor disse que chegou a pensar em suicídio nos meses seguintes ao impeachment e até gravou uma fita com uma mensagem para a família. O senhor guardou esta fita? COLLOR: Está guardada.

O senhor tem lembrança do que passou pela sua cabeça quando assinou a renúncia? COLLOR: O ato da renúncia foi assinado na Casa da Dinda, na madrugada do dia em que o Senado iria iniciar meu julgamento político. Isso foi logo em seguida a um jantar, em que reuni senadores e alguns deputados que estavam nos apoiando para combinarmos o que poderia acontecer no dia seguinte. Quando terminou o jantar ¿ e teríamos número para evitar o impeachment ¿ , não sei por que, mas alguma coisa bateu na cabeça.

Pensei: ¿Esse pessoal vai trair¿. Já tinha ocorrido na Câmara, por que não no Senado? Eu aí disse: não. Vou renunciar para tentar evitar a suspensão dos meus direitos políticos