Título: O risco-cinema
Autor: Miranda, André
Fonte: O Globo, 17/01/2010, Segundo Caderno, p. 1

Bilheterias não recuperam investimento, e setor defende prorrogação de renúncia fiscal

Daqui a um ano, se a principal lei de incentivo fiscal do cinema brasileiro não for modificada, o setor audiovisual não poderá mais se utilizar do mecanismo que mais injetou recursos na produção de filmes nos últimos 15 anos. No fim de 2010, encerra-se o prazo de vigência do Artigo 1º da Lei do Audiovisual, pelo qual já foram investidos mais de R$430 milhões. O problema é que, quando se estipulou a data para que o Artigo 1º chegasse ao fim, se imaginava que o cinema brasileiro já teria alcançado, ao menos parcialmente, a tão sonhada autossustentabilidade. A realidade, porém, é sempre mais cruel do que a ficção. Dos 56 filmes nacionais produzidos com verba incentivada e lançados em 2008, apenas seis tiveram renda nos cinemas maior do que os recursos captados. O balanço de 2009 ainda não foi fechado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), mas, apesar de o público ter crescido cerca de 76% no último ano, o filme nacional, em mais de 90% dos casos, ainda não dá retorno.

A Lei do Audiovisual foi criada num contexto bem diferente do atual. Em 1990, o governo de Collor de Mello decidira pelo fechamento da Embrafilme, a estatal que durante 20 anos foi responsável por fomentar a produção nacional. Numa época de poupanças bloqueadas, se iniciavam os anos negros do cinema no Brasil.

A solução apareceu em 1993, com o decreto, em 20 de julho, da Lei nº 8.685, que ficou popularmente conhecida como Lei do Audiovisual. Seu Artigo 1º dizia: "Até o exercício fiscal de 2003, inclusive, os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias referentes a investimentos feitos na produção de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras de produção independente". O objetivo era incentivar o cinema nacional até que este pudesse caminhar por pernas próprias. No fim do primeiro prazo imaginado, 2003, os envolvidos discutiram, perceberam que a meta ainda não havia sido alcançada e postergaram o término da lei para 2006.

No segundo prazo, houve repeteco da discussão. O GLOBO chegou a publicar um artigo assinado pelo produtor Fabiano Gullane e pelo diretor Hector Babenco pedindo a prorrogação da lei. "O Brasil não pode abrir mão dessa visão de futuro", escreveu a dupla em 18 de dezembro de 2006. Resultado: o término do Artigo 1º foi novamente adiado, desta vez para o fim de 2010. A classe, agora, deve batalhar por mais uma renovação.

- Ainda não começamos a discutir sobre uma nova prorrogação ou não do Artigo 1º. Mas o mercado não amadureceu tanto quanto se achava, então acredito em sua continuidade - afirma Mário Diamante, diretor da Ancine. - De qualquer maneira, nós temos outros mecanismos de incentivo fiscal que podem substituir bem o Artigo 1º, como o Artigo 1º A e os Funcines.

Produtor pode receber só 5% da bilheteria

Na prática, a maior diferença entre o Artigo 1º A e o 1º é que aquele dá cerca de 25% a menos de desconto no Imposto de Renda do que este. Já os Funcines são fundos geridos por investidores privados, também beneficiados por renúncia fiscal.

- O prazo de validade do artigo 1º A e do incentivo fiscal de 100% do Funcine vai até 2016. Logo, acho que um bom ano para a reflexão sobre a autossustentabilidade do cinema brasileiro é 2016. Estamos no caminho certo, expandindo o mercado, gerando competitividade e substituindo o produto estrangeiro - diz Diamante.

Em 2007, R$45,3 milhões foram captados pelo Artigo 1º, e R$38,5 milhões, pelo 1º A. Já em 2008, a relação se inverteu com o Artigo 1º A concentrando a maior parte dos recursos: R$49 milhões contra R$38,1 milhões do 1º. Porém, no primeiro semestre de 2009, o Artigo 1º voltou a prevalecer, com R$11,5 milhões, com o 1º A registrando R$10,8 milhões.

Mas a conta não fecha quando se compara o valor arrecadado com a renda dos filmes - além do 1º e do 1º A, muitas produções também se utilizam do Artigo 3º, voltado para aportes financeiros, via renúncia fiscal, de distribuidoras estrangeiras. Vencedor do Festival de Brasília, "Cleópatra" (2008), de Julio Bressane, arrecadou R$3,4 milhões e fez R$45 mil. Baseado na obra de José Sarney, "O dono do mar" (2007), de Odorico Mendes, arrecadou R$5,9 milhões e teve um lucro bruto de R$22,1 mil. Dirigido por Ruy Guerra, "O veneno da madrugada" (2006) arrecadou R$5,6 milhões e rendeu R$27,9 mil.

Em 2008, a renda total do cinema brasileiro foi de R$65,3 milhões. Já a captação ficou em R$151,4 milhões. Mesmo com a bilheteria melhorando em 2009 (R$132 milhões), ainda assim o valor não deverá ultrapassar os recursos incentivados - cujo balanço só será fechado pela Ancine em abril. Além disso, o ganho com as bilheterias não volta inteiramente para o produtor. A conta varia bastante de filme para filme, mas em geral 25% vão para o pagamento de impostos de exibição, distribuição e produção (em alguns casos, os empresários podem abater impostos correspondentes a gastos com insumos) e do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Os donos das salas de cinema ficam com cerca de 40%, e os distribuidores, com cerca de 10%. Os gastos de comercialização podem consumir 15% da bilheteria. Sobram, então, 10% para a produção.

Mas, de acordo com o economista Rodrigo Guimarães e Souza, consultor da empresa Elaborar Projetos, o proponente de um longa-metragem acaba ficando apenas com cerca de 5% da bilheteria porque usualmente ainda precisa dividir seu percentual com outros sócios e investidores. Ou seja, se um filme nacional lucrou R$8 milhões nos cinemas, o faturamento líquido do produtor será de apenas R$400 mil (o produtor, porém, tem seu salário pago com o recurso incentivado). Em 2008, de 79 lançamentos, apenas um longa brasileiro fez mais de R$8 milhões de bilheteria: "Meu nome não é Johnny", com R$18,1 milhões. Em 2009, foram quatro, entre os 85 lançamentos: "Se eu fosse você 2" (R$50,5 milhões), "A mulher invisível" (R$20,5 milhões), "Normais 2" (R$18,9 milhões) e "Divã" (R$16,5 milhões).

- Em nosso modelo de financiamento de produção, via lei de incentivo, o governo abocanha a maior parte do resultado. Como se trata de uma indústria em desenvolvimento, que precisa de políticas de incentivo para existir, seria importante que o governo incorporasse uma isenção fiscal na cadeia, até o ponto em que a comercialização fosse suficiente para pagar sua produção - diz Guimarães e Souza.

Além da bilheteria nas salas, outros fatores que podem aumentar o faturamento do cinema brasileiro são a venda dos filmes para o exterior, a comercialização de direitos para TV e o home video. Mas mesmo nesses casos o panorama é negro. O mercado de home video, cujo faturamento já foi mais relevante do que o das salas de cinema, vem caindo ano a ano por causa da pirataria. Já a TV e o mercado exterior representam números pequenos no caso do filme brasileiro.

- Em nenhum país do mundo os filmes se pagam apenas com as bilheterias domésticas de cinema. Nem nos EUA - afirma Paulo Sérgio de Almeida, cineasta e diretor do portal de análise de mercado Filme B. - Em qualquer atividade econômica, ou você cria condição para a atividade sobreviver ou cria o incentivo fiscal, que é um paliativo até que o governo consiga regular a exibição, o DVD e a TV em relação ao audiovisual.

Pela dificuldade de retorno com o cinema nacional, são poucas as empresas que investem verbas próprias na realização dos filmes. O risco, portanto, é feito com recursos de renúncia fiscal. É um risco público. Em outros mercados mundo afora, até mesmo nos europeus, também se produzem filmes assim. A diferença, no Brasil, é que praticamente só se produzem filmes com dinheiro público.

- Há empresas que arriscam, mas com percentagens menores. A questão é que fica difícil conseguir um investidor que tope o risco - diz Paulo Sérgio de Almeida, diretor do Filme B. - A participação do filme brasileiro nas bilheterias cresceu, indo de 9,9% em 2008 para cerca de 15% em 2009. Eu acho que, se chegarmos a uma participação de 20%, a classe empresarial já se animaria em acreditar no retorno do investimento. Outra possibilidade é abrirmos um canal de vendas no mercado externo ou aumentarmos a venda de filmes brasileiros para as TVs.

"Linha de passe", de Walter Salles, foi um dos raros casos de filmes brasileiros que se bancaram apenas com o financiamento no exterior. Sua bilheteria no Brasil foi de R$1,4 milhão. Sua captação foi zero.

- Como a gente tem consciência de que os recursos são escassos, não havia por que disputar patrocínio com o "Linha..." no Brasil - explica o produtor Maurício Andrade Ramos, da VideoFilmes. - Mas não há a menor condição de abrirmos mão do Artigo 1º. O caso do "Linha..." é uma exceção. Oxalá que se multiplique pelo Brasil.

Outra alternativa à renúncia fiscal é o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), um programa que começou a operar em 2009. A gestão do FSA é da Ancine, e sua meta é investir em filmes, esperando retorno. Seus recursos - R$29 milhões em 2009 e R$81,5 milhões previstos para 2010 - são compostos basicamente pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, a Condecine, um imposto pago pelo próprio setor. O objetivo do governo é que o FSA possa progressivamente desonerar a renúncia fiscal.

- Mas o Fundo Setorial do Audiovisual ainda é um mecanismo novo para sabermos se ele vai poder substituir o Artigo 1º. No momento em que estamos, sua renovação é fundamental por pelo menos mais cinco anos - afirma Leonardo Monteiro de Barros, um dos sócios da Conspiração Filmes.