Título: Artifícios contra a concorrência
Autor: Beck, Martha; Oswald, Vivian
Fonte: O Globo, 08/02/2010, Economia, p. 15

Empresas recorrem à Justiça para atrasar punições pelo Cade e processos se arrastam por 2 anos BRASÍLIA

Empresas acusadas de prejudicar a concorrência por meio de cartéis e outros delitos, como venda casada, estão se valendo da Justiça para atrasar sua condenação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça. Só em 2009, 132 diferentes tipos de instrumentos legais foram usados ¿ ações, impugnações e recursos ¿ para suspender decisões do conselho. Os artifícios ocorrem até mesmo antes de os processos chegarem ao Cade para julgamento.

Responsável pela investigação de infrações, a secretária de Direito Econômico, Mariana Tavares, afirma que processos administrativos que poderiam levar nove meses para serem concluídos e encaminhados ao Cade para julgamento têm se arrastado por, pelo menos, dois anos.

Segundo ela, o fato de as autoridades de defesa da concorrência terem conseguido se fortalecer através de parcerias com a Polícia Federal e o Ministério Público acabou levando as empresas a recorrerem a subterfúgios jurídicos. O aumento das operações de busca e apreensão de documentos melhorou a qualidade das provas que confirmam se empresas estavam combinando preços ou fazendo acordos para prejudicar seus rivais.

A arma para evitar uma condenação ¿ que pode chegar a 30% do faturamento das empresas ¿ tem sido recorrer à Justiça para reclamar dessas operações ou do tipo de mandado que a Secretaria de Direito Econômico (SDE) obteve para entrar nos escritórios dos investigados.

¿ Levar os processos para o Judiciário faz parte do jogo, mas essa é uma estratégia truculenta, que indica o uso inadequado de recursos públicos que são muito escassos ¿ afirma Mariana.

Recurso também é usado em fusões

Em muitos casos, a condenação da empresa é inevitável e o que ocorre é apenas uma tentativa de atrasá-la. Uma das investigações que têm se alongado mediante o uso de artifícios judiciais é de um cartel no setor de sucos de laranja. O processo envolveu uma operação de busca e apreensão em diversas empresas em 2006. Até agora, porém, a SDE não conseguiu analisar documentos apreendidos na Citrovita (uma das maiores exportadoras de suco de laranja do país), que vem adiando esse procedimento por meio de liminares. Procurada, a empresa não quis se pronunciar sobre o assunto.

Nem mesmo o cartel do aço ¿ o primeiro já condenado no Brasil ¿ chegou a pagar a multa aplicada pelo Cade. Embora a decisão administrativa tenha sido tomada em 2005, até hoje as empresas condenadas não recolheram os valores devidos, que, atualizados, somam R$ 80 milhões.

¿ Casos como esse têm um efeito devastador na imagem do Cade ¿ diz o presidente do órgão, Arthur Badin.

As empresas também têm usado artifícios legais para tentar barrar decisões do Cade em fusões. O mais famoso envolve a compra da Nestlé pela Garoto. A operação foi barrada pelo conselho em 2004, mas até agora não houve uma decisão final, pois as empresas continuam lutando para consolidar o negócio. A Justiça considera seriamente reenviar o caso ao Cade para novo julgamento.

A Nestlé informou que, quando recorreu da decisão do Cade, foi vitoriosa tanto na primeira quanto na segunda instâncias. ¿No entanto, a Nestlé prefere não se pronunciar sobre o processo, pelo fato de ele estar sub judice¿, afirma a nota.

Outra disputa famosa foi a que envolveu a fusão de cinco grandes mineradoras e o descruzamento de ações entre Vale e CSN. Em 2007, o Cade aprovou a operação com restrições e definiu um prazo para que a Vale seguisse suas determinações.

Como a empresa descumpriu o prazo, foi multada em R$ 33,5 milhões.

A Vale informou que ainda está discutindo judicialmente a punição.

Embora o Cade tenha feito a execução judicial da multa, a Vale apresentou a sua defesa e ainda está discutindo em outro processo sua anulação.

Elizabeth Farina, a ex-presidente do Cade e professora do Departamento de Economia da USP, afirma que a demora no cumprimento de decisões do Cade acaba reduzindo sua eficiência e dando aos infratores uma sensação de impunidade.

¿ Mesmo nos EUA, onde cartel é um crime que resulta em prisão de fato, são constatados casos de empresas que voltam a cometer irregularidades ¿ alerta Farina.

¿ A procrastinação das decisões administrativas prejudica a economia, pois estimula as empresas a continuarem agindo contra a concorrência ¿ afirma Rui Coutinho, ex-presidente do Cade e ex-secretário de Direito Econômico.

Segundo ele, muitas vezes falta ao Judiciário conhecimento técnico para avaliar decisões de mérito do Cade. Portanto, é importante que juízes se especializem nessa área.

¿ Enquanto isso, o ideal é que o Judiciário controle a legalidade processual, ou seja, confirme, por exemplo, se houve direito a ampla defesa. Já a avaliação de mérito deve ser feita pelo Cade ¿ diz Coutinho

Para advogados, prática é legítima

Advogados da área de concorrência, porém, afirmam que artifícios legais para suspender decisões do Cade ou da SDE são legítimos. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, essa prática é até pouco utilizada no Brasil.

¿ Essa é uma possibilidade perfeitamente legal que é usada muito timidamente ¿ diz um advogado que preferiu não se identificar.

Segundo ele, a SDE tem decisões questionáveis, pois não aceita determinadas provas ou apresentações da defesa das empresas.

O advogado diz ainda que a secretaria também não reconhece prescrições de prazo, o que obriga as investigadas a usarem decisões judiciais.