Título: Gullar 8 e 80
Autor:
Fonte: O Globo, 10/09/2010, Opinião, p. 7

Não há nada de surpreendente em completar 80 anos de idade, mas quando quem os completa ostenta em seu RG o nome José Ribamar Ferreira ¿ nosso poeta maior Ferreira Gullar ¿ lá isso são outros oitenta.

Não se pense, no entanto, que estou lembrando somente do seu aniversário, que transcorre neste dia 10 de setembro; esta data é apenas um pretexto para celebrar sua majestosa poesia.

Gullar não tem idade, tem versos. Ele é 8 e 80: crítico de arte, memorialista, biógrafo, tradutor, artista plástico, ensaísta, roteirista de TV e, acima de tudo, um poeta sem as amarras do tempo.

Meu primeiro contato com a sua obra poética aconteceu quando eu ainda era adolescente. Veio-me pelas mãos do acaso, mas não por acaso faz parte do meu convívio até hoje. Também foi a casualidade que se incumbiu de nos aproximar. Encontramo-nos ¿ pela primeira vez ¿ num teatro no Rio; estávamos, naquele momento, com a mesma dificuldade: tínhamos um convite para assistir à peça, mas a lotação da sala estava esgotada. Lembro-me de ter chamado o produtor do espetáculo e de lhe ter dito: ¿Não se pode fazer isso com o maior poeta do Brasil.¿

Minha indignação emocionada ajudou a resolver aquele impasse. E ainda conquistei a simpatia do poeta.

Hoje, analisando o fato, chego à conclusão que aquela manifestação na porta do teatro ¿ mesmo que inconscientemente ¿ fora a minha primeira homenagem prestada a Gullar. Depois desse episódio, as homenagens se ampliaram por outras manifestações. Em 2000, uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio celebrou os seus 70 anos de vida. A mostra ¿ que reunia o acervo pessoal do poeta ¿ recebeu mais de 30 mil visitantes e itinerou por São Paulo (Sesc Pompeia), Curitiba (Memorial de Curitiba), São Luís (Convento das Mercês) e Petrópolis (Sesc). No ano de 2005 um helicóptero lançou sobre o Aterro do Flamengo 75 mil poemas para lembrar os 75 anos do poeta. No ano seguinte, por ocasião das comemorações dos 30 anos do ¿Poema sujo¿, outra exposição exibia uma escultura de 200 quilos que retratava Ferreira Gullar de corpo inteiro. O detalhe: toda feita de chocolate.

Com ou sem os efeitos da endorfina, os leitores devem estar se perguntando o que vai acontecer em 2010. Prometo não decepcioná-los. Tampouco as galáxias. Por enquanto, cuido de degustar ¿ com delicadeza ¿ o sabor indizível de sua poesia.

Depois de saborear aquelas peras ¿que não gritam como galo¿ ¿ servidas em seu livro ¿A luta corporal¿ ¿, descobri o paladar inquieto das frutas e a espantosa digestão e indigestão da poesia. Um poema era muito mais do que o encontro de rimas e belas imagens. Era o espanto feito de linguagem, pulsando perplexo pelas aliterantes artérias do desconhecido.

Apresentar Ferreira Gullar é missão delicada, tarefa para um ourives: Gullar é ouro em (pó)esia. Trata-se de um poeta de muitas vozes. Nos seus poemas há vagas para a solidão, o encanto, o desencanto, o engajamento político-social, o cosmo, a plasticidade, a alquimia e ¿ sobretudo ¿ para o novo. Inventar e se inventar é sua marca registrada: ¿Vivo a pré-história de mim/por pouco pouco/eu era eu/José de Ribamar Ferreira Gullar/não deu/o Gullar que bastasse/não nasceu.¿ (¿Inventário¿)

Quando lemos os versos deste admirável poeta, somos envolvidos por uma aura de plenitude: Gullar pelos sentidos. Se uma parte de Gullar é poesia, a outra parte também. Afinal, como definir este moço quando está poeta se ele é todo víscera? Se ele é todo verso?

CARLOS DIMURO é poeta e curador da exposição ¿Ferreira Gullar 80 anos¿.

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