Título: Inundados de burocracia
Autor: Rizzo, Alana; Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 10/07/2009, Brasil, p. 8

Exigências às entidades participantes e falta de organização contribuem para que a construção das cisternas caminhe a passos lentos

Benevon Souza transporta água numa carroça e cobra R$ 3 por viagem

Aparecida, do povoado de Fumaça: ¿Tem ano que é seca de fazer medo¿

Montes Claros ¿ Em Minas Gerais, um dos estados incluídos no programa Um milhão de cisternas (P1MC), a meta seria a construção de cerca de 22 mil cisternas. Mas até agora foram construídas, no estado, apenas 10.914.

De acordo com a cordenadora executiva da Articulação do Semiárido (ASA), Marilene de Souza, o atendimento a algumas exigências, que garantem a transparência, é um dificultador em pequenos municípios. ¿Todas as entidades participantes precisam cumprir as exigências legais e apresentar uma documentação completa¿, diz Marilene, que é responsável também pelo Centro de Agricultura Alternativa (CAA), entidade que trabalha com os pequenos agricultores da região.

Ela explica que outro fator prejudicial ao andamento do P1MC é que somente podem fornecer materiais para as obras as firmas que têm como fazer a entrega nas localidades. ¿O problema é que em muitos municípios não há fornecedores aptos para isso. E os materiais precisam ser levados a comunidades distantes até 70km da sede do município, em áreas de difícil acesso¿, relata. Segundo Marilene, em vários lugares, o programa não foi iniciado simplesmente por causa da falta de organização da sociedade local. Deveriam ser atendidos com as cisternas, 83 municípios do semiárido mineiro. Mas, em 13 deles, apesar do problema da seca, as obras ainda não foram iniciadas simplesmente porque não houve articulação de entidades da sociedade civil para desenvolver os projetos e receber os recursos. ¿O problema é que, pela maneira como conduzimos o programa, o trabalho deve ser feito diretamente com o envolvimento da comunidade. Evitamos qualquer tipo de intervenção que venha possibilitar o favorecimento de algum grupo político¿, explica.

Em Águas Vermelhas, município de 12,7 mil habitantes, a 756km de Belo Horizonte, no Vale do Jequitinhonha, nenhuma cisterna foi construída. ¿Se o programa ainda não chegou aqui é porque ninguém na cidade sabe da sua existência¿, afirmou Jaci de Souza, do Departamento de Projetos da Prefeitura de Águas Vermelhas. ¿Precisamos muito de obras desse tipo, pois o município sofre muito com a seca. Há várias associações aqui que podem ser beneficiadas¿, disse. Segundo ele, para amenizar a falta de água, três caminhões-pipas estão rodando na zona rural do município, atendendo cerca de 400 famílias.

A coordenadora, Marilene de Souza, explicou que em diversos municípios mineiros, as cisternas começaram a ser construídas, mas a meta ainda está longe de ser alcançada por causa de problemas locais e distâncias das comunidades castigadas pela seca.

Precisamos muito de obras desse tipo, pois o município sofre muito com a seca

Jaci de Souza, Departamento de Projetos da Prefeitura de Águas Vermelhas (MG)

Salvação nos carros-pipas

Enquanto as cisternas não chegam, o semiárido continua dependendo dos carros-pipa, sejam eles públicos ou privados. Em Belém do Piauí (PI), Benevon dos Reis Souza, 20 anos, transporta água em galões, numa carroça puxada por um burrico, para moradores do povoado Cabloco. Cobra R$ 3 por viagem (cinco por dia). ¿Para não cansar o burrico¿, comenta. No interior de Canapi, alto sertão de Alagoas, distante 240km de Maceió, a água aparada na cisterna instalada na casa de Renato Oliveira, 46 anos, não dura por todo o período de estiagem. No verão, é preciso comprar água em Delmiro Gouveia (AL), distante 90km. Cada carro-pipa custa R$ 170.

Oliveira tem roças de feijão e milho, além de vacas de leite. Mas precisa trabalhar no povoado Fumaça como vigia para completar a renda da família. Dona Maria Aparecida, mulher de Renato, comenta que, em alguns anos, a estiagem vai até abril ou maio. ¿Tem ano que é seca de fazer medo. A gente compra água para os animais. São os carros-pipa que colocam. Vêm de Delmiro Gouveia. O alimento para os animais, no verão, é palma comprada. Mas aqui já teve crises piores.¿ Ela está otimista com as chuvas: ¿Agora, vamos até agosto, setembro. Quando está no inverno, a gente apara na cisterna¿.

As cisternas seriam bem-vindas no povoado Paulista, interior de Itainópolis (PI), distante 340km de Teresina. Ali, o agricultor Abílio José de Araújo, 45 anos, caminha alguns quilômetros para buscar água para a família. ¿A água a gente traz lá do passo, num burro de carga. Aqui, não tem água. Já prometeram colocar água, mas só nas vésperas de política (eleições). Depois, esquecem.¿ Ele sustenta a família (mulher e duas filhas) com as roças de milho e feijão. Planta cerca de dois hectares, a metade como meeiro. Consegue uns R$ 600 por safra. Se tivesse irrigação o rendimento seria bem melhor, mas, por enquanto, a primeira necessidade é a água para beber. (LV)