Título: Visão parcial
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 27/04/2011, Economia, p. 24
O governo tem um diagnóstico parcial da inflação e todos, inclusive o Banco Central, estão incentivando uma perigosa interpretação de que a inflação subiu no mundo inteiro e que o Brasil não está tão mal assim. Parecem não ter entendido que o país tem uma história diferente na relação com esse problema. Não demonstram perceber o risco da reindexação.
O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, e o ministro Guido Mantega estavam completamente afinados, mas quem mudou o discurso foi o BC para afinar o coro com a Fazenda; quando o ideal é que houvesse sim um coro afinado, mas com a Fazenda entendendo mais decisivamente a parte que lhe cabe nesse combate, que só funciona em várias frentes.
Para o ministro da Fazenda, "o Brasil não está mal na foto" quando se trata de inflação. A taxa está no teto da meta e vai superá-la em breve, mas a "foto" que ele se refere é que relativamente a outros estamos bem. Tombini tombou na mesma direção e deu números em transparências que mostravam os outros: Reino Unido, 4%; Índia, 8,8%; China, 5,4%. Vários países com metas explícitas já ultrapassaram a meta. Outros, sem metas, estão com taxas altas.
- A inflação é tema de debate internacional. Nos nossos encontros de banqueiros centrais é assunto recorrente - disse Tombini.
Essa ideia de que se os outros podem, também podemos, elide o fato de o Brasil ter convivido por 30 anos com uma superinflação indexada, e o risco é fortalecer os mecanismos de indexação ainda presentes. Tombini apresentou um mapa-múndi com todos os números e cores para confirmar o diagnóstico de que é um fato mundial. Admitiu que há "outros componentes", como uma inflação de serviços, mas que também seriam "comuns a outros países emergentes", que retomaram o crescimento mais rapidamente e por isso têm uma inflação maior.
O diagnóstico não está errado, mas é parcial. Ao ser parcial, pode errar no remédio. Houve aumento forte nos preços das commodities após a crise de 2008, puxado principalmente pelo crescimento da China e afetado por problemas climáticos. Mas não é só isso que explica a alta de preços. No Brasil, ela foi alimentada com aumento forte do gasto público, incentivo ao crédito e ao consumo que não foram suspensos no momento certo, por motivos políticos. O país já havia saído da recessão, mas o governo por imprudência ou cálculo político manteve os gastos e os incentivos fiscais em 2010.
O ministro Guido Mantega disse que o governo fez "uma redução significativa" dos gatos públicos e deu os números: as despesas aumentaram 19,3% em 2010 e vão aumentar 7,1% este ano. Trocando em miúdos, o que o ministro está admitindo é que num ano em que o país crescia fortemente, ele estava fazendo uma política pró-cíclica, elevando as despesas em quase 20%. Aumentar gasto em ano de crise, faz sentido; mas quando a economia já está acelerada, é uma forma de contratar mais inflação. Em 2011, as despesas serão maiores do que as do ano passado em outros 7,1%. "Não devemos poupar armas, devemos usar todas as armas possíveis contra a inflação, sejam monetárias ou fiscais", disse Mantega. Palavras fortes, mas que não convencem quando se comparam com os dados que eles mesmos divulgam. O governo fará superávit primário porque está arrecadando mais e não por corte de gastos. Apenas o ritmo de crescimento das despesas é que foi reduzido.
A ideia de que o atual grupo no poder é inventor de uma nova fórmula econômica atravessou o governo Lula e continua sendo proclamado pela presidente Dilma.
- Nós todos aqui presentes sabemos que o Brasil passou e passa por um novo momento na sua história. Nós mudamos, de fato, os caminhos do desenvolvimento. Quando nós assumimos, de uma forma muito especial, a convicção de que não havia contradição entre desenvolvimento econômico, distribuição de renda e inclusão social, nós mudamos os caminhos que o país tinha traçado até então - disse a presidente.
Isso fica ótimo em campanha eleitoral, mas dado que ela já nos governa há quatro meses pode restabelecer a verdade histórica. Quem dizia que havia essa contradição - e que era preciso fazer o bolo crescer para depois dividir - era o então ministro, hoje aliado do governo, Delfim Netto, nos anos 70. Não foi o governo atual, nem o de Lula, que inventou a inclusão. Basta olhar as estatísticas de redução da pobreza pós-estabilização e qualquer economista constatará que o círculo virtuoso começou na estabilização. A inflação, como se sabe, tem o poder perverso de tirar renda exatamente de quem tem menos. Por isso, não se faz distribuição de renda em meio à inflação alta, o que a torna o grande inimigo de qualquer projeto de inclusão.
Para ficar claro que o governo atual tem a mesma visão partida da história recente do Brasil, o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, começou sua explicação com uma série de dados bons que chamou de "conquistas da sociedade brasileira nos últimos dez anos." Então fomos informados de que a virtude começou há dez anos. Pena que esse tempo não inclua um dos momentos importantes do processo que foi a introdução da política de metas de inflação em 1999, na qual Tombini teve participação.