Título: Três anos de pressão e polêmica
Autor: D'Elia, Mirella
Fonte: Correio Braziliense, 08/08/2009, Brasil, p. 13

Juízes não se entendem sobre o mecanismo de proteção às mulheres, mas STF promete encerrar o longo dilema até o fim do ano

Ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação que debate o tema: promessa de agilidade na decisão

Sancionada há três anos, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) ainda não é uma unanimidade entre os juízes. Ao contrário: provoca discussão nos tribunais brasileiros até hoje. Nas decisões, nem todos os magistrados aplicam a lei, considerada um marco na defesa da mulher contra a violência. Alegam que ela contém pontos que violariam a Constituição Federal. O debate se acirrou a tal ponto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que confirme a validade do texto e mande suspender o efeito de todas as decisões contrárias. A ação foi proposta pela Advocacia-Geral da União (AGU). A discussão ¿ que se arrasta há mais de um ano e meio na Suprema Corte ¿ está perto do fim.

A ministra Nilcéia Freire, titular da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, aproveitou a semana em que a lei completou três anos para aumentar a pressão por um posicionamento do Supremo. Na última terça-feira, bateu à porta do ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação que discute o assunto, para pedir pressa no julgamento. Como resposta, ouviu a garantia de que o tema entrará em pauta até o fim do ano.

Um dos principais argumentos de juízes para não aplicar a Lei Maria da Penha em decisões é que ela afrontaria o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição. Em outras palavras, defendem que a proteção contra a violência prevista pela lei não seja restrita às mulheres. Outros magistrados afirmam que seria de competência dos estados e não da União dispor sobre a matéria. Caso o STF bata o martelo e decida que a lei é constitucional, eles não poderão mais deixar de aplicá-la.

¿Há juízes que entendem que a lei é inconstitucional porque só prestigia a mulher. Eles acham que o homem deveria ter o mesmo tratamento. Mas passou despercebido para esses magistrados o fato de que a edição da Lei Maria da Penha foi ensejada pelo número assustador de violência doméstica envolvendo as mulheres¿, disse a secretária-geral de contencioso da Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça. Ela representa a AGU em julgamentos no STF nas ausências do advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. ¿A lei é uma política de afirmação das mulheres que tem que ser seguida. A expectativa é que se julgue a ação o quanto antes para trazer segurança jurídica. Com isso, as mulheres vão se sentir mais seguras¿, completou a secretária.

O ministro Marco Aurélio parece disposto a resolver logo o imbróglio. Em dezembro de 2007, ele negou liminar pleiteada pela AGU para suspender todas as ações sobre a questão que correm em instâncias inferiores. ¿Seria um tiro no pé. Isso prejudicaria a proteção às mulheres¿, explicou. O relator lembrou que um dos pontos mais polêmicos é definir se o processo deve seguir na Justiça, mesmo quando a mulher se arrepende de ter prestado queixa. A lei diz que isso deve ocorrer em casos de lesão corporal, mas há juízes que não concordam. ¿Esse é o cerne da questão¿, disse o ministro. ¿Há juízes que admitem que a mulher pode se arrepender. Mas, quando ela se arrepende, a tendência é que a agressão seja pior¿, opinou Marco Aurélio.

A lei é uma política de afirmação das mulheres que tem que ser seguida¿

Grace Mendonça, secretária-geral de contencioso da AGU

Lei deixada de lado

Não existe um levantamento sobre as ações que correm na Justiça brasileira questionando a Lei Maria da Penha. Mas sabe-se que juízes de tribunais no Mato Grosso do Sul, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul já deixaram de aplicá-la. O juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), ficou conhecido por usar uma espécie de sentença-padrão para rejeitar pedidos de medidas protetivas contra homens que agrediram companheiras. Ele chegou a dizer que a Lei Maria da Penha é ¿um conjunto de regras diabólicas¿ e que ¿a desgraça humana começou por causa da mulher¿.

O caso chegou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2007 e até hoje aguarda solução. O CNJ resolveu abrir um processo de revisão disciplinar depois que a corregedoria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) arquivou um processo administrativo contra o magistrado. Em nota enviada ao conselho, o juiz negou ter agido de forma machista. ¿Como posso ser rotulado de machista se estou exatamente admitindo as fragilidades masculinas?¿, afirmou.

Ao Correio, o magistrado de 54 anos disse não se arrepender de nenhuma decisão que tomou (leia entrevista ao lado) e reiterou: considera parte da lei inconstitucional.

TRÊS PERGUNTAS PARA EDÍLSON RUMBELSPERGER RODRIGUES, JUIZ DE SETE LAGOAS

Por que o senhor não concorda com a Lei Maria da Penha? Nos casos de agressão física, sexual e psicológica mediante ameaça, a mulher fica muito vulnerável, especialmente no ambiente doméstico. Nessas situações, aplico a lei desde que ela foi criada e não a considero inconstitucional. A lei é inconstitucional, injusta, demagógica, discriminatória e vingativa no que se refere às demais violências, em que não há diferença entre o homem e a mulher. Na ofensa verbal, por exemplo, ambos se ofendem e se sentem ofendidos. Quando você começa a desigualar naquilo em que os dois são iguais, você fere o princípio da isonomia.

A solução seria mudar a lei? Sim. O legislador deveria rever a lei. Deixá-la imutável em relação à violência física, sexual e psicológica mediante ameaça contra a mulher no ambiente doméstico e, em todas as demais espécies de violência elencadas no artigo 7, disciplinar como fica essa relação para que não se cometam injustiças. O Estado não pode ser fonte de injustiça.

O senhor se arrepende de algo? De forma alguma. As pessoas me conhecem e conhecem meus posicionamentos. Não posso violar minha consciência, minhas decisões são justíssimas. Não posso aplicar essa lei em favor das mulheres se não posso aplicá-la em favor dos homens. Isso me parece óbvio como a luz do sol. As minhas decisões são todas assim: aplico a Lei Maria da Penha em sua íntegra, com todos os seus rigores, quando há violência física, sexual e psicológica mediante ameaça. Nos outros casos de violência, não.