Título: Entre Pinóquio e Hipócrates
Autor: Branco, Gil Castello
Fonte: O Globo, 07/06/2011, Opinião, p. 6

É conhecida a fábula de Collodi e o seu personagem Pinóquio, simpático boneco de madeira que ganhou vida com a fada madrinha. A curiosidade é que o seu nariz aumentava quando mentia. Seria ótimo que o mesmo acontecesse com as nossas autoridades. Algumas até possuem a cara de pau, mas como o nariz não se altera fica difícil interpretar se falam ou não a verdade.

Há cinco anos, entre as afirmações de Francenildo e as negativas do ministro Palocci - relativas a eventuais reuniões de negócios e prazer em Brasília -, grande parte dos brasileiros acreditou no caseiro. Jeito caipira, tímido, disse à época, no Senado: "Falar a verdade é fácil; duro é mentir, quando você tem que ficar pensando..."

Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal refutou a possibilidade de Palocci ter sido o mandante da quebra de sigilo do caseiro, ato ilegal que pretendia constatar que o serviçal estava sendo financiado por terceiros para incriminar o ministro. Ficou sem resposta a clássica pergunta: "A quem interessava o crime?" Há pouco tempo, quando a Caixa Econômica Federal apresentou sua defesa jurídica e institucional, veio à tona o que todo mundo suspeitava, ou seja, que a ordem para vasculhar a vida de Francenildo partira do gabinete do então ministro. Mas, agora é tarde. Ao menos nesse episódio, Palocci já está inimputável.

De lá para cá, ambos seguiram os seus caminhos. O caseiro, desempregado, continuou a viver modestamente. O ministro, com vários empregos, perigosamente.

Valendo-se do "valor de mercado" adquirido como ministro da Fazenda, Palocci montou a empresa Projeto, que dava consultorias tão lucrativas quanto misteriosas. Mesmo sem funcionários, faturava mais que as duas maiores consultorias do ramo, no país. Os contratos continham cláusulas de "sucesso" e confidencialidade. Do faturamento de R$20 milhões em 2010, metade foi paga entre novembro e dezembro, quando o sócio/deputado/consultor já tinha sido anunciado como o braço direito da nova presidente da República. Em qualquer país do mundo, são fatos que misturam público e privado e exigem respostas rápidas e claras.

O ministro, porém, depois de prolongado silêncio, mostrou-se ingênuo durante entrevista à TV Globo, no último fim de semana: "Eu não fiz tráfico de influência, como eu provo isso?"

A resposta é simples, ministro. Sendo transparente. Dizendo quais são os clientes da sua empresa, que tipo de serviço foi prestado e quanto lhe pagaram. E, diga-se de passagem, não será nenhum favor a divulgação dessas informações, pois prestar contas à sociedade é dever do homem público.

Nos últimos 15 dias a situação de Palocci paralisou o país. Menos por suas explicações, e mais pelo que não foi dito. A sociedade assiste incrédula à pancadaria à qual o ministro é submetido e que tende a prosseguir. O Legislativo não o convoca e satisfaz a vontade do Palácio. Já o Executivo justifica que na ocasião do suposto enriquecimento ele não era servidor público, e por isso não o investiga. O "mico" foi empurrado para o Ministério Público, instituição que inicialmente não manifestou interesse em apurar os fatos e, agora, arquivou o processo.

Como no Brasil tudo pode acontecer, crescem as possibilidades de Palocci continuar ministro, sem que nada seja esclarecido à sociedade. Afinal, só as quebras dos sigilos bancários e fiscais de Palocci e de sua empresa poderiam, verdadeiramente, explicar os fatos. O ministro, como já se viu, permanecerá fiel à sua clientela.

Com formação médica, é provável que Palocci esteja seguindo à risca o que disse Hipócrates (460-351 a.C.), considerado o maior médico da Grécia Antiga: "Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto."

Neste caso, medicina à parte, a sociedade exige que nada fique em segredo... Como não vivemos no mundo de Pinóquio, tal como diz Francenildo, basta falar a verdade...

GIL CASTELLO BRANCO é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas.