Título: Uso múltiplo dos recursos hídricos
Autor: Kelman, Jerson; Briscoe, John
Fonte: O Globo, 18/06/2011, Opinião, p. 7

Em 2015 vencem as concessões de diversas usinas hidrelétricas que somam cerca de 20% da capacidade instalada do país, inclusive as usinas da Chesf. A simples extensão do prazo de concessão, sem qualquer condicionalidade, é uma hipótese pouco provável. Não apenas pelas dificuldades legais, mas também porque os consumidores de energia elétrica já pagaram, ao longo dos anos, por grande parte do investimento feito nas hidrelétricas.

Isto é, salvo algumas exceções, os consumidores já são praticamente "donos" desses ativos.

O mais provável é que o governo procure uma maneira constitucional e legalmente robusta para estender o prazo dos contratos de concessão das usinas da Chesf, e das demais concessionárias, com a condição de que, em troca, elas subtraiam do preço da energia uma parcela que, grosso modo, corresponderia à parcela da amortização não mais necessária.

Trata-se de uma alternativa razoável para alcançar a almejada modicidade tarifária. Todavia, outras possibilidades de dar um "destino social" a essas usinas merecem consideração. Por exemplo, re p ro d u z i r, c o m a d a p t a ç õ e s , a bem-sucedida iniciativa do presidente Roosevelt de concentrar numa só entidade a responsabilidade de desenvolver o uso múltiplo dos recursos hídricos e de tomar medidas mitigadoras para o controle de eventos extremos, tanto as secas quanto as cheias. É o que tem feito a Tennessee Valley Authority (TVA) desde quando foi criada, na década de 30, até os dias de hoje.

O vencimento dos contratos das usinas hidrelétricas permite mudar a forma de fazer concessões, tanto em termos geográficos como em termos de escopo. Geograficamente, as concessões deixariam de ser pontuais (as quedas de água) e passariam a abranger a escala da bacia hidrográfica.

Em termos de escopo, as concessões passariam a ser de uso múltiplo dos recursos hídricos.

A concessionária de uso múltiplo do Rio São Francisco (por brevidade, Chesf-UM, "UM" de Uso Múltiplo) herdaria as atuais atribuições de algumas entidades da administração pública, direta e indireta, em particular as responsabilidades da própria Chesf e da Codevasf.

A nova concessionária teria a atribuição de gerar e comercializar energia elétrica, mitigar as enchentes, operar e manter a estrutura da chamada "transposição do Rio São Francisco" (em construção), aduzir água bruta, manter o rio em condições navegáveis, zelar pela qualidade da água, incentivar a pesca e o turismo, além de preservar a mata ciliar.

O pressuposto da proposta é que Chesf-UM teria musculatura econômica, devido à venda de energia elétrica, para cuidar das atividades vinculadas ao bem comum: a água.

Atuaria sob fiscalização de duas agências reguladoras: a Agência Nacional de Águas (ANA), coadjuvada pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, em temas relacionados ao uso do rio; e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em temas relacionados à inserção das usinas hidrelétricas no Sistema Interligado Nacional.

Seria necessário que o contrato de concessão da Chesf-UM tivesse cláusulas que a obrigasse a cuidar dos usos do rio associados a benefícios sociais. O contrato poderia prever a obrigação de implantar e manter benfeitorias ¿ estações de tratamento de esgoto, por exemplo ¿ cujo custo anual não ultrapassasse o teto de x% da receita líquida. O percentual x% estaria especificado no próprio contrato, e as benfeitorias seriam definidas em planos quinquenais aprovados pelo conselho de administração da Chesf-UM.

Naturalmente, a composição do conselho de administração deveria ser modificada para acomodar as novas responsabilidades da empresa, passando a abrigar não apenas os representantes do Ministério de Minas e Energia, mas também os dos Ministérios de Integração Nacional e do Meio Ambiente, bem como os representantes do Comitê da Bacia. Aliás, o próprio Comitê poderia sofrer algum aperfeiçoamento para ser reconhecido, de fato e de direito, como o fórum mais adequado para a discussão sobre uso múltiplo dos recursos hídricos.

JERSON KELMAN é professor da Coppe- UFRJ.

JOHN BRISCOE é professor da Harvard University.