Título: ONU vê desespero na Síria
Autor: Berlinck, Deborah; Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 29/11/2011, O Mundo, p. 28

Relator acusa regime de crimes contra a Humanidade, entre os quais o assassinato de 250 crianças

Vinte mil torturados, 3,5 mil mortos, 250 crianças assassinadas, desaparecimentos, prisões arbitrárias, tiros disparados contra a população nas ruas. Este é o impressionante rastro de violência deixado pelo governo de Bashar al-Assad entre março e setembro na Síria, segundo o relatório divulgado ontem pela comissão independente de investigação criada pelas Nações Unidas. O documento afirma que as violações são um crime contra a Humanidade e pede o ingresso de observadores no país. Do governo sírio, exige o fim das violações e o julgamento dos responsáveis. Segundo o presidente da comissão, o pesquisador brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, a situação é desesperadora, e as violações dificilmente teriam ocorrido sem o conhecimento das altas esferas do governo sírio:

- O relatório mostra padrões de violações de direitos humanos que também constituem crimes contra a Humanidade. Estas práticas seriam impossíveis sem o conhecimento ou autorização das autoridades da Síria - disse Pinheiro ao GLOBO. - Entrevistas com militares desertores demonstram que vários deles receberam ordens para atirar para matar manifestantes. Eram informados de que se tratavam de terroristas. Começamos a reconstituir a cadeia de comando na repressão.

Entre a população mais vulnerável estão as crianças, que tem sofrido tortura e até violência sexual, e os milhares de detidos pelas forças de segurança, apontam os pesquisadores nomeados pela ONU. A falta de atendimento aos feridos nos hospitais também é preocupante.

- Não sabemos o que está acontecendo nesses centros de detenção - diz uma das relatoras especiais da ONU, Yakin Ertürk, da Turquia, lembrando que muitos casos de tortura têm sido reportados à comissão, que realizou 223 entrevistas com vítimas e testemunhas da violência.

Líbano não vai aplicar sanções

A comissão especial foi criada há dois meses pelo Conselho de Segurança da ONU, mas foi impedida pelo governo sírio de entrar no país. Paulo Sérgio Pinheiro, que foi escolhido sobretudo por sua experiência e por ser brasileiro - já que o Brasil mantinha ainda um canal aberto com o regime sírio - pedirá mais uma vez o ingresso do grupo. O trabalho prossegue até março do próximo ano.

- Entre 3 milhões e 4 milhões de sírios foram afetados pela violência. Alguns milhares tiveram que sair do país. Não falo de opositores ou militantes. Falo de famílias, adolescentes, crianças que tiveram que se refugiar. Calculamos que entre 15 mil e 20 mil pessoas estejam detidas por causa das manifestações. Mas ninguém sabe exatamente. Sabemos que escolas e estádios estão sendo usados como prisões - relata Pinheiro.

O relatório faz quinze recomendações ao governo de Assad, entre elas, o fim das agressões, investigações imparciais dos acontecimentos, a libertação imediata dos presos em situação arbitrária e o acesso rápido da comissão, assim como de observadores externos, ao país. Segundo Pinheiro, o relatório foi enviado ao Conselho de Direitos Humanos e à Assembleia Geral da ONU, órgão que decidirá qual encaminhamento dará ao documento. O presidente da comissão, no entanto, não quis opinar sobre uma eventual intervenção na Síria como ocorreu com a ação militar da OTAN na Líbia:

- A situação é profundamente grave e a cada dia fica agravada. Todos os grupos no interior da Síria estão afetados. As cidades estão cercadas. A vida diária está intensamente perturbada, e o acesso à água e alimentos é bastante problemático. Num momento em que vários países da região caminham para maior transparência, fim da censura e democracia, na Síria, se agrava a prática de desrespeito sistemático dos direitos humanos. Para o século XXI, é extremamente chocante. - disse. - Quanto às soluções políticas do conflito, não cabe a nós e sim à comunidade internacional.

O relatório, considerado dentro da ONU como a prova mais completa até agora das violações de direitos humanos cometidas pelo governo da Síria - país que impede a entrada de observadores internacionais e controla o trabalho de jornalistas independentes - foi acolhido com preocupação por países ocidentais. Após a divulgação do texto, EUA e União Europeia (UE) pediram que a Síria pusesse fim à violência e permitisse a entrada de observadores no país. O documento deve agora elevar mais a pressão sobre o governo de Assad, que na véspera já havia sido atingido por sanções sem precedentes da Liga Árabe, tachadas ontem pelo chanceler sírio de "declaração de guerra econômica".

Tentando minimizar o efeito das sanções, o chanceler Walid al-Muallem afirmou que o país já havia repatriado 95% dos fundos que seriam afetados pela decisão da Liga Árabe de congelar ativos do governo sírio no exterior. Em Damasco, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra as restrições, que segundo críticos devem atingir principalmente a população mais pobre.

O Líbano, que na véspera se abstivera da votação, confirmou ontem que, assim como o Iraque, não adotará as sanções contra a Síria . A histórica decisão da Liga Árabe, no entanto, foi elogiada pela UE, que já adota restrições semelhantes ao governo de Bashar al-Assad. Na quinta-feira, os chanceleres dos países-membros do bloco europeu devem se encontrar para aprovar um novo pacote de sanções. As novas medidas estudadas incluem a suspensão de exportações para a Síria de equipamentos para a indústria de petróleo e de softwares que possam ser usados para monitorar a internet e a comunicação via celular.

A notícia foi bem-recebida também por membros do Conselho de Segurança da ONU que, segundo o embaixador alemão para o órgão, Peter Wittig, deveria discutir a questão ao longo do dia. Nenhuma discussão formal estava prevista na pauta de ontem, e uma ação mais dura deve esbarrar na oposição de Rússia e China - que vetaram, no mês passado, uma resolução condenando o banho de sangue na Síria.

Com agências internacionais